São Paulo, sábado, 27 de julho de 2002

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Bandido lendário encerra gênese da Austrália

O bom ladrão

Divulgação
Cartaz da Coroa britânica em que é oferecida recompensa pela captura do bandoleiro Ned Kelly



Chega ao Brasil saga do "Robin Hood australiano", que valeu a Peter Carey o Booker Prize de 2001


FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Levou dois anos para que a polícia da Coroa britânica capturasse Ned Kelly, na Austrália do fim do século 19. Quando ele foi enforcado, aos 26 anos, já se tornara um personagem mítico -um Robin Hood para uns, algo como um Lampião para outros.
Para encontrar o lado humano do mito, o escritor Peter Carey, 59, empreendeu busca ainda mais longa. A composição de "A História do Bando de Kelly" lhe custou cerca de três anos, mas ele diz que, na verdade, foram 35 empenhados na idéia de dar voz à versão desse (afinal) vencido.
O resultado nos revela a comovente história de um "bom ladrão", bandoleiro apesar do desejo de retidão. "Se meus lábios ensinassem ao público que homens se tornam maus por serem maltratados, então minha vida não terá sido desperdiçada", resumiu o próprio Ned Kelly, desesperado por fazer-se ouvir, na Carta de Jerilderie, um dos documentos que serviram de mapa a Carey.
O romance, que chega ao Brasil em agosto, encima outra busca pessoal do australiano Carey: a da história de seu país. Toda a sua obra se esforça em indagar a identidade da nação, concebida como imensa colônia penal para os criminosos da mãe Grã-Bretanha.
O "tour de force" em torno de Ned Kelly fez com que, em 2001, Carey se igualasse ao sul-africano J.M. Coetzee na conquista de um segundo Booker Prize, honraria máxima a que concorrem anualmente autores da Comunidade Britânica (o primeiro fora para "Oscar e Lucinda", em 88).
"Acho que alguns australianos prefeririam que a história desaparecesse, mas ela não vai", disse Carey à Folha, por telefone, de Nova York, onde vive e, no momento, trabalha em um novo livro -de tema secreto, mas novamente sobre a Austrália.

Folha - O que faz com que o sr. se debruce sobre a história de um homem para falar da Austrália?
Peter Carey -
A Austrália nasce como colônia penal. Havia, até o começo do séc. 20, certo juízo social que fazia com que as pessoas se perguntassem "como se pode construir uma sociedade decente a partir dessa gente?". Há uma angústia em torno da chamada "mancha" ou "semente" da condenação: toda a sociedade estaria contaminada por essa origem.

Folha - A vida de Kelly é, então, simbólica da história de seu país?
Carey -
Sim, absolutamente. Ele é "a" semente condenada. Mas pode-se ver nele um jovem mais inteligente, corajoso e decente que qualquer um dos que tentaram enjaulá-lo -fisicamente e ao conceito determinista da "semente condenada". Ele era versátil, poderia ter sido qualquer um. Nesse sentido é, também, uma história sobre possibilidades.

Folha - Como o sr. equilibrou fonte histórica e ficção na obra?
Carey -
Não me interessava fazer uma pesquisa histórica original. Era como um grande palco escuro, com focos de luz muito sutis, sob cada qual uma parte da história se desenrolava. Quis respeitar a versão aceita, mas imaginando coisas que nunca foram pensadas sobre o comportamento dos personagens. Temos essa grande história, que amamos, mas temos sido emocionalmente preguiçosos quanto a ela e nunca a contamos bem para nós mesmos.

Folha - O sr. usa a voz de Kelly, alguém pouco culto, de gramática falha. Como a compôs?
Carey -
Kelly escreveu várias cartas. Eu as reli buscando uma comoção pela linguagem. Tendo lido Joyce e Beckett, há alguns ecos, ocasionalmente, deles. Também recorri à minha infância numa cidadezinha no Estado de Victoria: quando comecei a ir à escola, tinha muitos colegas pouco instruídos, que falavam com linguagem parecida à desse livro. Essa voz nasce do solo em que eu cresci.

Folha - Em algum momento o sr. pensou em usar a terceira pessoa?
Carey -
Nem por um segundo. Tinha um registro tão forte da escrita de Kelly que era como ter seu DNA e, a partir dele, sentir, conhecer e reconstruir esse homem, para que ele pudesse andar sobre a terra, quase. Sempre quis fazer algo assim, criar a poética de uma voz pouco culta me atraía. É uma das razões pelas quais criei o livro.


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