São Paulo, sábado, 27 de julho de 2002

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"A HISTÓRIA DO BANDO DE KELLY"

Anti-herói pertence mais à tragédia que ao western

DA REPORTAGEM LOCAL

"O que é a história senão nossa imagem da história?", perguntava o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).
Cioso da lição daquele que foi mestre de seus primeiros contos, o australiano Peter Carey construiu uma carreira de sete romances, dedicados, em diferentes graus, a afinar o foco sobre a imagem dos fatos de seu país.
"A História do Bando de Kelly", no entanto, se destaca no panorama crescente dos livros que romanceiam fatos históricos, ao evitar artifícios comuns ao gênero.
No livro de Carey, não se empilham diálogos para fugir da imersão no íntimo dos personagens nem se opta pela saída igualmente fácil (embora mais nobre) de criar distanciamento a partir de um narrador em terceira pessoa.
Ao contrário, Carey veste até a mais mínima peça de roupa de seu personagem, o bandoleiro Edward Kelly (1854-1880), mais conhecido como Ned -não que ele tivesse muitas, herdeiro que foi de degredados irlandeses, a população primeira da Austrália.
A vida dos pares de Kelly, nos conta Carey, não era nada fácil: lutar para ter terra e, depois, continuamente, provar que era merecedor dela; lutar contra fome, acusações de roubo, intempéries.
Ainda assim, o livro não se perde em descrições da labuta, mas nos mostra como ela se desenrola aos olhos do jovem Ned, alçado aos 12 anos à condição de homem da casa, com a morte do pai.
A narrativa se arma como uma longa carta-testamento, à guisa de justificativa, escrita por Ned à filha que não chegou a conhecer.
Carey dota seu personagem de uma escrita fortemente oral, em que faltam vírgulas e pontos. No começo, é difícil de apreender e, por vezes, beira a inverosimilhança, em uma ou outra expressão talvez denotadora de mais cultura do que Kelly poderia ter.
Finalmente, porém, é cativante a voz que Carey imagina como sendo aquela que, registra a história, o bandoleiro tentou sem sucesso alçar, escrevendo cartas que nunca conseguiria tornar públicas durante sua vida.
É justamente com a hábil construção emocional do personagem que o autor consegue forçar, mesmo no distante leitor brasileiro, uma das indagações cruciais de sua obra: como uma colônia penal se torna uma nação?
Ou antes, neste caso específico: como, apesar de uma "mancha" vergonhosa, de uma origem contaminada, alguém pode crescer agarrado a valores sólidos?
"Eu só queria ser um cidadão", lamenta Kelly. Enquanto isso, passa por todo tipo de provação, da chacota infantil a injustiças policiais, tentando se manter fiel a seu propósito de ser um pacato sitiante. No meio do caminho, acaba empurrado, pela própria mãe, para um de seus amantes, o temido fora-da-lei Harry Power. Torna-se aprendiz de bandido, a despeito de sua vontade, e, aos 15 anos, vai preso pela primeira vez.
"Este é seu novo sítio anunciou o sgto. Whelan e percebi que estava finalmente no lugar que me havia sido destinado desde o nascimento meus olhos se adaptaram à luz examinei o catre de ferro abaixo da janela e pensei não é tão ruim quanto eu temia."
O personagem de Carey luta -e perde- para seu destino inexorável. Assim, se aproxima mais da tragédia, no sentido clássico do termo, do que do western, como poderia sugerir o enredo.
(FRANCESCA ANGIOLILLO)


A História do Bando de Kelly
True History of the Kelly Gang
    
Autor: Peter Carey
Tradutor: Domingos Demasi
Editora: Record
Quanto: R$ 40 (464 págs.)




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