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"A HISTÓRIA DO BANDO DE KELLY"
Anti-herói pertence mais à tragédia que ao western
DA REPORTAGEM LOCAL
"O que é a história senão
nossa imagem da história?", perguntava o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).
Cioso da lição daquele que foi
mestre de seus primeiros contos,
o australiano Peter Carey construiu uma carreira de sete romances, dedicados, em diferentes
graus, a afinar o foco sobre a imagem dos fatos de seu país.
"A História do Bando de Kelly",
no entanto, se destaca no panorama crescente dos livros que romanceiam fatos históricos, ao evitar artifícios comuns ao gênero.
No livro de Carey, não se empilham diálogos para fugir da imersão no íntimo dos personagens
nem se opta pela saída igualmente
fácil (embora mais nobre) de criar
distanciamento a partir de um
narrador em terceira pessoa.
Ao contrário, Carey veste até a
mais mínima peça de roupa de
seu personagem, o bandoleiro
Edward Kelly (1854-1880), mais
conhecido como Ned -não que
ele tivesse muitas, herdeiro que
foi de degredados irlandeses, a
população primeira da Austrália.
A vida dos pares de Kelly, nos
conta Carey, não era nada fácil:
lutar para ter terra e, depois, continuamente, provar que era merecedor dela; lutar contra fome,
acusações de roubo, intempéries.
Ainda assim, o livro não se perde em descrições da labuta, mas
nos mostra como ela se desenrola
aos olhos do jovem Ned, alçado
aos 12 anos à condição de homem
da casa, com a morte do pai.
A narrativa se arma como uma
longa carta-testamento, à guisa de
justificativa, escrita por Ned à filha que não chegou a conhecer.
Carey dota seu personagem de
uma escrita fortemente oral, em
que faltam vírgulas e pontos. No
começo, é difícil de apreender e,
por vezes, beira a inverosimilhança, em uma ou outra expressão
talvez denotadora de mais cultura
do que Kelly poderia ter.
Finalmente, porém, é cativante
a voz que Carey imagina como
sendo aquela que, registra a história, o bandoleiro tentou sem sucesso alçar, escrevendo cartas que
nunca conseguiria tornar públicas durante sua vida.
É justamente com a hábil construção emocional do personagem
que o autor consegue forçar, mesmo no distante leitor brasileiro,
uma das indagações cruciais de
sua obra: como uma colônia penal se torna uma nação?
Ou antes, neste caso específico:
como, apesar de uma "mancha"
vergonhosa, de uma origem contaminada, alguém pode crescer
agarrado a valores sólidos?
"Eu só queria ser um cidadão",
lamenta Kelly. Enquanto isso,
passa por todo tipo de provação,
da chacota infantil a injustiças policiais, tentando se manter fiel a
seu propósito de ser um pacato sitiante. No meio do caminho, acaba empurrado, pela própria mãe,
para um de seus amantes, o temido fora-da-lei Harry Power. Torna-se aprendiz de bandido, a despeito de sua vontade, e, aos 15
anos, vai preso pela primeira vez.
"Este é seu novo sítio anunciou
o sgto. Whelan e percebi que estava finalmente no lugar que me havia sido destinado desde o nascimento meus olhos se adaptaram à
luz examinei o catre de ferro abaixo da janela e pensei não é tão
ruim quanto eu temia."
O personagem de Carey luta
-e perde- para seu destino inexorável. Assim, se aproxima mais
da tragédia, no sentido clássico do
termo, do que do western, como
poderia sugerir o enredo.
(FRANCESCA ANGIOLILLO)
A História do Bando de Kelly
True History of the Kelly Gang
Autor: Peter Carey
Tradutor: Domingos Demasi
Editora: Record
Quanto: R$ 40 (464 págs.)
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