São Paulo, sexta-feira, 27 de agosto de 2004

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MÚSICA

Chega ao Brasil edição especial de "Diamond Dogs", inspirado em Orwell

Cantor David Bowie de 1974 "prevê" 1984 em 2004

Divulgação
David Bowie em 1974, na época da produção de "Diamond Dogs", que ganha edição especial


DA REPORTAGEM LOCAL

Chega ao Brasil com atraso costumeiro um programa de reedições radiográficas da obra do inglês David Bowie, em que pop e história se fundem num produto que soma reedição musical, raridades e curiosidades, recapitulação histórica em texto e imagem. A edição extra de "Diamond Dogs" aporta aqui no aniversário de 30 anos do álbum original, consumando uma rede intricada de inter-relações.
"Diamond Dogs" resultou, em 74, de uma tentativa frustrada de Bowie. Ele queria operar uma versão musical do romance "1984", de George Orwell, na origem (1949) um tratado soturno de ataque ao totalitarismo de esquerda do stalinismo soviético. Dali saiu o "Big Brother" paranóico que governava os mínimos atos do rebanho humano e que viria a servir de mote tragicômico para a onda atual de "reality shows".
A viúva de Orwell vetou a adaptação, e Bowie teve de fantasiar sua ópera-rock num cenário futurista em que o imaginário orwelliano prevalecia em citações cifradas e diretas -"1984" e "Big Brother" são duas das faixas.
Bowie, assumidamente entupido de cocaína naquele período, reservou lugar de honra a Orwell, mas chacoalhou referências horripilantes num caldo musical e visual opressivo e claustrofóbico.
O grito contra o totalitarismo despencava em imagens apocalípticas -"isso não é rock'n'roll, isso é genocídio"- de um mundo habitado por lagartos, ratazanas, mortos-vivos suicidas. "We Are the Dead", proclamava um dos mais tensos e delicados rocks -o transtorno e o impulso suicida se traduziam musicalmente em lirismo, e essa seria uma das senhas para que o horror alucinado de Bowie e correlatos atraísse tanto culto e adoração.
Não só pelas inúmeras referências indiretas às drogas, o mundo arrombado que Orwell previa pelo viés político era confundido, em Bowie, com uma rota de desespero individual. Era "assustado e solitário", como decifrava "Sweet Thing", tristíssima carta de intenções gays que definia o canto de cisne do andrógino glam rock. A sexualidade, oprimida pela sociedade e culpada por ela própria, era tida como chave cega que daria num futuro de horror.
Disso nascia também "Rebel Rebel", para sempre um dos grandes clássicos anfetaminados do rock'n'roll: "Você deixa sua mãe zonza/ ela não entende se você é um garoto ou uma garota". O adolescente Alex, de "Laranja Mecânica" (Stanley Kubrick, 1971), abandonava denúncias marxistas de opressão social e mergulhava no fascínio horrorizado pela própria sexualidade ambivalente.
Bem, assim Bowie previa o mundo de 1984 em 1974. Hoje, 2004, "Big Brother" é uma câmera em programas televisivos de fofocas, os prenúncios discothèque em "1984" são coisas do passado, a sexualidade "rebel, rebel" conquista pontos contra a opressão, o Orkut veicula sem controle os princípios do "duplipensar" orwelliano. Heróis incontestes do século 20, Orwell, Kubrick e Bowie mantêm o heroísmo -não sem ver aderido em suas auras um perfume datado, tragicômico.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)


Diamond Dogs
    
Artista: David Bowie
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 49, preço sugerido



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