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MÚSICA
Chega ao Brasil edição especial de "Diamond Dogs", inspirado em Orwell
Cantor David Bowie de 1974 "prevê" 1984 em 2004
Divulgação
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David Bowie em 1974, na época da produção de "Diamond Dogs", que ganha edição especial |
DA REPORTAGEM LOCAL
Chega ao Brasil com atraso
costumeiro um programa de
reedições radiográficas da obra
do inglês David Bowie, em que
pop e história se fundem num
produto que soma reedição musical, raridades e curiosidades, recapitulação histórica em texto e
imagem. A edição extra de "Diamond Dogs" aporta aqui no aniversário de 30 anos do álbum original, consumando uma rede intricada de inter-relações.
"Diamond Dogs" resultou, em
74, de uma tentativa frustrada de
Bowie. Ele queria operar uma versão musical do romance "1984",
de George Orwell, na origem
(1949) um tratado soturno de ataque ao totalitarismo de esquerda
do stalinismo soviético. Dali saiu
o "Big Brother" paranóico que
governava os mínimos atos do rebanho humano e que viria a servir
de mote tragicômico para a onda
atual de "reality shows".
A viúva de Orwell vetou a adaptação, e Bowie teve de fantasiar
sua ópera-rock num cenário futurista em que o imaginário orwelliano prevalecia em citações cifradas e diretas -"1984" e "Big
Brother" são duas das faixas.
Bowie, assumidamente entupido de cocaína naquele período,
reservou lugar de honra a Orwell,
mas chacoalhou referências horripilantes num caldo musical e visual opressivo e claustrofóbico.
O grito contra o totalitarismo
despencava em imagens apocalípticas -"isso não é rock'n'roll,
isso é genocídio"- de um mundo habitado por lagartos, ratazanas, mortos-vivos suicidas. "We
Are the Dead", proclamava um
dos mais tensos e delicados rocks
-o transtorno e o impulso suicida se traduziam musicalmente
em lirismo, e essa seria uma das
senhas para que o horror alucinado de Bowie e correlatos atraísse
tanto culto e adoração.
Não só pelas inúmeras referências indiretas às drogas, o mundo
arrombado que Orwell previa pelo viés político era confundido,
em Bowie, com uma rota de desespero individual. Era "assustado e solitário", como decifrava
"Sweet Thing", tristíssima carta
de intenções gays que definia o
canto de cisne do andrógino glam
rock. A sexualidade, oprimida pela sociedade e culpada por ela
própria, era tida como chave cega
que daria num futuro de horror.
Disso nascia também "Rebel
Rebel", para sempre um dos
grandes clássicos anfetaminados
do rock'n'roll: "Você deixa sua
mãe zonza/ ela não entende se você é um garoto ou uma garota". O
adolescente Alex, de "Laranja Mecânica" (Stanley Kubrick, 1971),
abandonava denúncias marxistas
de opressão social e mergulhava
no fascínio horrorizado pela própria sexualidade ambivalente.
Bem, assim Bowie previa o
mundo de 1984 em 1974. Hoje,
2004, "Big Brother" é uma câmera
em programas televisivos de fofocas, os prenúncios discothèque
em "1984" são coisas do passado,
a sexualidade "rebel, rebel" conquista pontos contra a opressão, o
Orkut veicula sem controle os
princípios do "duplipensar" orwelliano. Heróis incontestes do
século 20, Orwell, Kubrick e Bowie mantêm o heroísmo -não
sem ver aderido em suas auras
um perfume datado, tragicômico.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
Diamond Dogs
Artista: David Bowie
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 49, preço sugerido
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