São Paulo, sábado, 27 de agosto de 2005

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CRÍTICA

Escritor vinga a arte moderna

DA REPORTAGEM LOCAL

Começa como uma história de mistério em Londres, vira uma improvável piada literária na Austrália, acaba como uma tragédia na Malásia. Em "Minha Vida, Uma Farsa", Peter Carey celebra a arte e a poesia contra as amarras do conservadorismo. Para isso, abraça o Frankenstein de Mary Shelley em um thriller que se desenvolve no decadente universo pós-colonial britânico.
Para refletir sobre a legitimidade da criação (o que é original? o que é cópia? o que é arte?), esmiúça uma anedota verídica australiana. Nos anos 1940, dois poetas antimodernistas locais (James McAuley e Harold Stewart) tentaram desmoralizar uma revista de vanguarda e inventaram um autor visionário, que batizaram com o nome de Ern Malley, supostamente morto aos 24 anos. Forjaram cartas manuscritas de uma irmã, enviadas a um editor que comprou a história e acabou processado. Falsificaram os seus poemas, que deviam parecer revolucionários, de vanguarda e sensuais. Os poemas foram criados com frases escolhidas ao acaso em revistas. Quase uma ironia dadaísta.
A fraude, quando descoberta, virou um escândalo e uma piada nacional. Hoje o falso autor (Ern Malley) e sua obra são mais importantes na literatura local do que os seus criadores. Isso inspirou Carey a inventar um Frankenstein literário, uma criatura que vai atrás de seu perplexo criador (no livro os dois poetas são representados por um infeliz ex-combatente australiano da Segunda Guerra, que carregará chagas até o final da vida).
O thriller literário arrasta personagens diversificados: um dândi inglês, uma artista bela e iconoclasta, soldados imperiais japoneses, líderes tribais obscuros e mulheres orientais soturnas que escondem a pele marcada por cicatrizes de doenças tropicais. A criatura literária se vira literalmente contra o criador, num terror que avança pelas ruas de Kuala Lumpur e daí para as selvas malaias.
A colagem de estilos e o fascínio pela contracultura fizeram a riqueza dos primeiros livros de Carey como "Bliss" (felicidade, 1981), "The Fat Man in History" (o gordo na história, 1974) e "The Illywhacker" (trapaceiro, 1985), todos inéditos no Brasil. Sua consagração veio com "Oscar e Lucinda" (Record, 1988), que lhe valeu o primeiro Booker Prize. O livro se aproveita dessa riqueza estilística, numa aventura épica e romântica, uma obra formadora. O segundo Booker Prize veio com "A História do Bando de Kelly" (Record, 2000), também já lançado no Brasil.
"Minha Vida, Uma Farsa" não tem, no entanto, a ironia de "Verdades e Mentiras", de Orson Welles. Seu brilho inicial diminui quando o nonsense substitui o mistério, a sátira avança sobre o suspense. Peter Carey representa aquilo que atrai a atual crítica literária britânica: o contraste de culturas, várias delas pinçadas do universo pós-colonial, assim como o fascínio dos antípodas. Transformar a fórmula "local" em universal é o seu maior desafio. (MARCOS STRECKER)


Minha Vida, Uma Farsa
   
Autor: Peter Carey
Tradução: Domingos Demasi
Editora: Record
Quanto: R$ 34,90 (320 págs.)


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