São Paulo, segunda-feira, 27 de setembro de 2004

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SHOW/CRÍTICA

Mariano e Lubambo em concerto

ARTHUR NESTROVSKI
CRÍTICO DA FOLHA

Já faz quase dois anos que Cesar Camargo Mariano e Romero Lubambo lançaram o CD "Duo". Foi tempo suficiente para o disco assumir condição de clássico: o primeiro real sucessor do álbum "Samambaia", que o mesmo pianista gravou com outro violonista, Hélio Delmiro, em 1981. Mas Mariano e Lubambo são ainda melhores ao vivo do que no estúdio, e deram um concerto exuberante na última sexta-feira, na Sala São Paulo.
"Concerto" é bem a palavra -e que diferença escutar essa música numa sala assim. Comparada às dispersões das casas de show, era como escutar o duo no quarto, com intimidade e atenção, com dedicação e cuidado, reconhecendo timbres, dinâmicas, acentos. Só que melhor, considerando o cenário. Enfim: como merece. (O que a Sala São Paulo está esperando para criar uma série de música popular?)
Um exemplo só não basta, mas ajuda a entender o que se ouviu. "Fotografia" começou com o pulso lento, meio livre, as harmonias luxuosas de Tom Jobim se espalhando como aromas pelo espaço. Depois pegou um andamento mexido. E Romero Lubambo fez então uma das dezenas de solos mirabolantes que tinha em estoque para a noite, combinando inspirações de Wes Montgomery (melodias oitavadas) e Luiz Bonfá (acordes blocados), entre outros, numa síntese própria e feliz.
Na seqüência, foi Cesar Camargo Mariano quem roubou a bola, para desenhar uma rapsódia característica, a mão esquerda mantendo sempre a ginga e a emoção da idéia traduzida em acordes gigantescos da direita, num crescendo impressionante. Mudança súbita de textura e dinâmica, para a cantilena que conduziu as coisas de volta ao sonhador começo. Final: só os dedos do pianista se mexendo, sem som, num silêncio cheio de música.
Logo depois, os dois artistas atacaram "Curumim", do próprio Mariano, com a semínima a mais ou menos 120 (batidas por minuto ou quilômetros por hora, tanto faz). Isso significa colcheias a 240, e são muitas colcheias. Mais do que isso, só em "Mr. Jr.", de Lubambo, que eles tocaram num bloco "americano", incluindo "Joy Spring" (de Clifford Brown e Max Roach) e "There Will Never Be Another You" (de Harry Warren e Mack Gordon).
O encontro do pianista com o violonista é um daqueles que faz cada um tocar ainda melhor do que já toca. Os dois músicos parecem livres e contentes, exercendo suas artes com uma confiança mais que natural. Gostam de tocar, de um jeito que ultrapassa qualquer formalidade e apaga qualquer receio.
Se em alguns casos isso leva a alguma distorção -como em "Rancho Fundo" (de Ary Barroso e Lamartine Babo), que eles tocaram como se a letra não tivesse a menor importância-, o resultado compensa, para quem está de coração aberto.
E quem não estaria, ouvindo aquele mar de música, realizada com tamanho abandono, e ao mesmo tempo com acabamento supremo?
Do início do "Samba Dobrado" (Djavan), a música saindo aos poucos das profundezas, até o bis de "Wave" (Tom Jobim), a música num limite da realidade, foi toda uma sucessão de alumbramentos, conduzida por dois grandes músicos em pleno domínio de si. Quer dizer: em pleno domínio de todos nós, que ficamos depois no limite de cá, pensando na vida e alumbrados, lembrando da música.


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