São Paulo, segunda-feira, 27 de setembro de 2004

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SHOW

Philips Music World reúne instrumentistas que fazem ponte entre continentes

Festival traz "música do mundo" sem ranços étnicos

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nomes como o do cantor sul-africano Vusi Mahlasela, do pianista Ray Lema (da República do Congo) ou do músico Foday Musa Suso (de Gâmbia) podem dar a falsa impressão de um evento típico de "world music". Mas o Philips Music World Festival, que acontece simultaneamente em São Paulo e Rio de Janeiro a partir desta quarta (veja a programação ao lado), tem pouco a ver com música étnica ou com a preservação de raízes musicais do Terceiro Mundo.
A saxofonista canadense Jane Bunnett, 47, ilustra bem uma tendência captada por esse festival em seu elenco: músicos que procuram parceiros em outros continentes para desenvolver novas fusões sonoras, sem se apegarem a raízes ou ranços étnicos. Conhecida na cena do jazz, Bunnett já realizou vários trabalhos com músicos de Cuba (vale ressaltar que muito antes que o fenômeno Buena Vista Social Club transformasse a música cubana em febre mundial). "Assim como estabeleci uma relação com o grupo Los Jubilados, entre outros músicos de Cuba, estes artistas que participam do festival também construíram suas relações. Mesmo sendo músicos únicos, eles optaram por unir forças, trocando influências em um projeto comum", diz Bunnet à Folha, observando que poder participar de um evento com esse conceito a faz se sentir "parte de uma comunidade musical".
A saxofonista conta que descobriu a música cubana por acaso. Ela e seu marido, o trompetista Larry Cramer, foram a Cuba pela primeira vez, em 1982, pensando apenas em relaxar. "Não podíamos acreditar na abundância musical que encontramos, desde o momento em que descemos no aeroporto. Logo descobrimos a existência de vários gêneros, sem falar na alta qualidade dessa música", avalia.
Desde então ela já retornou dezenas de vezes a Cuba. Assim se aproximou de inúmeros músicos locais, com os quais gravou álbuns como "Spirits of Havana" (1991), "Jane Bunnett and the Cuban Piano Masters" (1996), "Havana Flute Summit (1998) e "Alma de Santiago" (2001), que inaugurou sua parceria com Los Jubilados. Esse grupo de veteranos músicos vem da província de Santiago de Cuba, um pólo cultural da ilha que tem mais afinidade com a música africana e caribenha do que a capital Havana.
Citando Charles Mingus e Rahsaan Roland Kirk como jazzistas que a estimularam a incorporar outras influências musicais, a saxofonista canadense diz que a grande dificuldade ao se tentar fundir tradições musicais diferentes está em manter a integridade de cada uma. "Nenhuma delas deve ser prejudicada. Isso não é fácil, mas sabemos ser algo possível quando conhecemos trabalhos inspiradores, como os Dizzy Gillespie".
Foi por acaso também que, em meados dos anos 90, quando vivia em Paris, Bunnett conheceu o violonista paulista Filó Machado, recém-instalado no apartamento acima do seu. "Ele é um músico brilhante", elogia a canadense, que depois de conhecer alguns sambas e choros de Machado gravou com ele e alguns músicos cubanos o álbum "Rendez-Vous Brazil/Cuba" (1995), ainda inédito por aqui.
Comparando a cena musical de seu país com as de Cuba e Brasil, Bunnett acha que o fato de os cubanos e os brasileiros serem tão ligados à música cria melhores condições para que os músicos possam evoluir. "Não temos platéias tão educadas assim na América do Norte. Lá as pessoas não ouvem nada que não esteja nos dez primeiros lugares do "hit parade". Só conhecem o que aparece na MTV ou nas revistas de celebridades, não têm gosto pessoal. Isso é chocante", critica.
Fã da música instrumental brasileira, desde que a descobriu por meio de discos de Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, Bunnett não esconde sua excitação ao falar desses músicos. "Consegui ouvi-los num show duplo, em Toronto, acho que em 1986. Como eu estava com meu flautim, tocamos um pouco após o show. Naquela noite não consegui dormir de tão elétrica que fiquei", relembra.
Outro encontro musical que reflete bem o conceito cosmopolita do Philips Music World Festival é do norte-americano Jack DeJohnnette, um dos melhores bateristas de jazz na atualidade, com o africano Foday Musa Suso, virtuose do kora, um tradicional instrumento de cordas originário da África. Juntos os dois criam uma música híbrida, que une o improviso do jazz com a beleza singela das melodias africanas.
A intenção de fundir tradições musicais de diferentes nacionalidades também marca a trajetória do congolês Ray Lema. Desde o início da década de 80, ao se radicar na Europa, ele já se uniu a músicos de diversos países e estilos musicais, como o baterista pop inglês Stuart Copeland, o jazzista alemão Joachin Kuhn ou o grupo vocal sul-africano Mahotella Queens.


Carlos Calado é crítico musical e autor de "O Jazz Como Espetáculo", entre outros livros.


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