São Paulo, segunda-feira, 27 de setembro de 2004

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NELSON ASCHER

A última guerra

O rio Somme dá o nome a um "departamento" francês ao norte de Paris.
A Primeira Guerra Mundial principiara, na frente ocidental, com uma ofensiva do exército alemão que, durante o verão de 1914, se apossou de parcelas substanciais da França. Após a contra-ofensiva, as linhas de combate se estabilizaram e, até o armistício de 1918, nenhum dos contendores conquistou ou reconquistou muito mais terreno. A conflagração se converteu numa guerra de atrito em que cada qual consolidou suas posições com seqüências intermináveis de trincheiras separadas pela "terra de ninguém".
Meses de inação davam lugar a um ataque malsucedido ao qual se seguia um contra-ataque malsucedido.
Acontece que o progresso das décadas anteriores beneficiara desproporcionalmente a defesa. Essa, além de possuir uma máquina de produzir cadáveres em massa, a metralhadora, era abastecida através de ferrovias e dispunha de boas comunicações com a retaguarda. O ataque, a pé ou a cavalo, dependia, por seu turno, daquilo que o soldado pudesse carregar consigo em meio a lama ou neve, de fios telefônicos fáceis de romper e estafetas vulneráveis. Depois de começada uma operação, os comandantes geralmente ignoravam o que ocorria poucas centenas de metros adiante. No entanto, não pararam de despachar ondas de combatentes rumo às trincheiras inimigas, certos de que "desta vez" a tática funcionaria. Uma das definições da loucura é repetir os mesmos procedimentos esperando resultados diferentes.
Precedida por uma de barragem de artilharia que durara uma semana, a ofensiva do Somme, levada a cabo preponderantemente por 27 divisões (750 mil homens) da Força Expedicionária Britânica, foi lançada às 7h30 da manhã de 1º de Julho de 1916. Como a artilharia não danificara nem o arame farpado nem os bunkers subterrâneos do inimigo, os ingleses encontraram suas defesas intactas e, antes do fim do dia, sofreram 57.470 baixas, entre elas 19.240 mortos.
Quando, no inverno, a batalha cessou, os aliados haviam, ao custo de 600 mil baixas (contra 500 mil alemãs), avançado cerca de dez quilômetros.
É fácil, a um século de distância, condenar os generais e marechais de outrora. Militares que se formaram estudando as cargas de cavalaria das campanhas napoleônicas e fizeram carreira combatendo nativos na Ásia e na África não tinham como compreender a guerra industrial moderna conforme essa nascia diante de seus olhos.
As lições da Primeira Guerra, porém, foram assimiladas, de modo que, na Segunda Guerra, os exércitos envolvidos passaram tanto a privilegiar inovações como a promover oficiais capazes de se adaptarem a circunstâncias cambiáveis. Desde então as melhores forças armadas se mostraram flexíveis e inclinadas a "pensar diferente". Quem ocupa hoje o lugar do alto comando de 1916 são, portanto, menos os militares do que os repórteres, comentadores, analistas e ideólogos, enfim, a mídia, especialmente nos Estados Unidos e na Europa.
Lendo jornais como "The New York Times" ou "Le Monde", assistindo à BBC ou à CNN, obtém-se a impressão de que seus profissionais continuam, como se diz, travando a última guerra, ou melhor, a última que contou para eles, não a atual. Nem é culpa dos professores de geografia se seus alunos acham que a Mesopotâmia, banhada não pelo Tigre e Eufrates, mas pelo Mekong, fica no sudeste asiático. Embora seja sempre instrutivo comparar conflitos diversos, o único paralelo pertinente entre o Vietnã e o Iraque é o menos enfatizado: ambos são somente campanhas de uma conflagração global, respectivamente a Guerra Fria e a guerra contra o islamismo radical.
Tal fixação decorre sobretudo do fato de que, malgrado a Guerra do Vietnã ter sido uma derrota para os EUA e para a população vietnamita, ela foi sem dúvida uma vitória para a mídia que pesou tanto ou mais em seu desfecho do que tropas e armas. Inúmeros jornalistas veteranos estabeleceram suas reputações nos anos 60/70, e é com eles que os jovens aprenderam suas técnicas de combate. Se o insucesso na Indochina obrigou os estrategistas americanos a descartarem idéias e conceitos obsoletos, muito da imprensa, entregando-se à autocomplacência, contentou-se em perpetuar os mitos da época.
Assim, não obstante os Estados Unidos terem derrubado o Taliban afegão quase sem baixas e conquistado Bagdá em três semanas, apesar de capturarem Saddam Hussein e liquidarem seus filhos perdendo, em um ano e meio, enquanto desmontam pacientemente uma insurgência de baixa intensidade, apenas mil soldados, a expressão que mais se ouve é "atoleiro" (quagmire). A expressão, popularizada pela Guerra do Vietnã, não parece aplicável às informações a que se tem acesso. O grosso das baixas iraquianas se compõe de civis assassinados pelos "insurgentes", mas esses, segundo algumas fontes, já perderam talvez 30 mil dos seus, e a administração Bush afirma ter morto ou capturado 2/3 da liderança da Al Qaeda. Tampouco se divulgou quantos de seus militantes pereceram em campanhas como a de Tora Bora, em fins de 2001, no Afeganistão.
Aliás, o que caracteriza a presente guerra (bem como qualquer outra antes que vire história) é a escassez de informação. Cada lado passa boa parte do tempo procurando descobrir os planos do antagonista e quão fortalecido ou enfraquecido ele está. Ambos manipulam os dados e o que chega ao público não diretamente envolvido reduz-se a uma fração duvidosa do total. Quanto à mídia, sua maior ilusão reside, como no caso dos generais da batalha do Somme, em pensar que sabe mais do que, no momento, é possível saber.


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