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NELSON ASCHER
A última guerra
O rio Somme dá o nome a
um "departamento" francês
ao norte de Paris.
A Primeira Guerra Mundial
principiara, na frente ocidental,
com uma ofensiva do exército alemão que, durante o verão de 1914,
se apossou de parcelas substanciais da França. Após a contra-ofensiva, as linhas de combate se
estabilizaram e, até o armistício
de 1918, nenhum dos contendores
conquistou ou reconquistou muito mais terreno. A conflagração se
converteu numa guerra de atrito
em que cada qual consolidou suas
posições com seqüências intermináveis de trincheiras separadas
pela "terra de ninguém".
Meses de inação davam lugar a
um ataque malsucedido ao qual
se seguia um contra-ataque malsucedido.
Acontece que o progresso das
décadas anteriores beneficiara
desproporcionalmente a defesa.
Essa, além de possuir uma máquina de produzir cadáveres em
massa, a metralhadora, era abastecida através de ferrovias e dispunha de boas comunicações com
a retaguarda. O ataque, a pé ou a
cavalo, dependia, por seu turno,
daquilo que o soldado pudesse
carregar consigo em meio a lama
ou neve, de fios telefônicos fáceis
de romper e estafetas vulneráveis.
Depois de começada uma operação, os comandantes geralmente
ignoravam o que ocorria poucas
centenas de metros adiante. No
entanto, não pararam de despachar ondas de combatentes rumo
às trincheiras inimigas, certos de
que "desta vez" a tática funcionaria. Uma das definições da loucura é repetir os mesmos procedimentos esperando resultados diferentes.
Precedida por uma de barragem de artilharia que durara
uma semana, a ofensiva do Somme, levada a cabo preponderantemente por 27 divisões (750 mil
homens) da Força Expedicionária Britânica, foi lançada às 7h30
da manhã de 1º de Julho de 1916.
Como a artilharia não danificara
nem o arame farpado nem os
bunkers subterrâneos do inimigo,
os ingleses encontraram suas defesas intactas e, antes do fim do
dia, sofreram 57.470 baixas, entre
elas 19.240 mortos.
Quando, no inverno, a batalha
cessou, os aliados haviam, ao custo de 600 mil baixas (contra 500
mil alemãs), avançado cerca de
dez quilômetros.
É fácil, a um século de distância,
condenar os generais e marechais
de outrora. Militares que se formaram estudando as cargas de
cavalaria das campanhas napoleônicas e fizeram carreira combatendo nativos na Ásia e na
África não tinham como compreender a guerra industrial moderna conforme essa nascia diante de seus olhos.
As lições da Primeira Guerra,
porém, foram assimiladas, de
modo que, na Segunda Guerra, os
exércitos envolvidos passaram
tanto a privilegiar inovações como a promover oficiais capazes
de se adaptarem a circunstâncias
cambiáveis. Desde então as melhores forças armadas se mostraram flexíveis e inclinadas a "pensar diferente". Quem ocupa hoje o
lugar do alto comando de 1916
são, portanto, menos os militares
do que os repórteres, comentadores, analistas e ideólogos, enfim, a
mídia, especialmente nos Estados
Unidos e na Europa.
Lendo jornais como "The New
York Times" ou "Le Monde", assistindo à BBC ou à CNN, obtém-se a impressão de que seus profissionais continuam, como se diz,
travando a última guerra, ou melhor, a última que contou para
eles, não a atual. Nem é culpa dos
professores de geografia se seus
alunos acham que a Mesopotâmia, banhada não pelo Tigre e
Eufrates, mas pelo Mekong, fica
no sudeste asiático. Embora seja
sempre instrutivo comparar conflitos diversos, o único paralelo
pertinente entre o Vietnã e o Iraque é o menos enfatizado: ambos
são somente campanhas de uma
conflagração global, respectivamente a Guerra Fria e a guerra
contra o islamismo radical.
Tal fixação decorre sobretudo
do fato de que, malgrado a Guerra do Vietnã ter sido uma derrota
para os EUA e para a população
vietnamita, ela foi sem dúvida
uma vitória para a mídia que pesou tanto ou mais em seu desfecho do que tropas e armas. Inúmeros jornalistas veteranos estabeleceram suas reputações nos
anos 60/70, e é com eles que os jovens aprenderam suas técnicas de
combate. Se o insucesso na Indochina obrigou os estrategistas
americanos a descartarem idéias
e conceitos obsoletos, muito da
imprensa, entregando-se à autocomplacência, contentou-se em
perpetuar os mitos da época.
Assim, não obstante os Estados
Unidos terem derrubado o Taliban afegão quase sem baixas e
conquistado Bagdá em três semanas, apesar de capturarem Saddam Hussein e liquidarem seus filhos perdendo, em um ano e
meio, enquanto desmontam pacientemente uma insurgência de
baixa intensidade, apenas mil
soldados, a expressão que mais se
ouve é "atoleiro" (quagmire). A
expressão, popularizada pela
Guerra do Vietnã, não parece
aplicável às informações a que se
tem acesso. O grosso das baixas
iraquianas se compõe de civis assassinados pelos "insurgentes",
mas esses, segundo algumas fontes, já perderam talvez 30 mil dos
seus, e a administração Bush afirma ter morto ou capturado 2/3 da
liderança da Al Qaeda. Tampouco se divulgou quantos de seus
militantes pereceram em campanhas como a de Tora Bora, em
fins de 2001, no Afeganistão.
Aliás, o que caracteriza a presente guerra (bem como qualquer
outra antes que vire história) é a
escassez de informação. Cada lado passa boa parte do tempo procurando descobrir os planos do
antagonista e quão fortalecido ou
enfraquecido ele está. Ambos manipulam os dados e o que chega
ao público não diretamente envolvido reduz-se a uma fração
duvidosa do total. Quanto à mídia, sua maior ilusão reside, como
no caso dos generais da batalha
do Somme, em pensar que sabe
mais do que, no momento, é possível saber.
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