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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Retrato do artista quando jovem
"Travessia de Verão", escrito por Truman Capote aos 20 anos e perdido durante meio século, é lançado no Brasil
TRUMAN CAPOTE morreu em
1984. Mas, na realidade, Capote morreu antes: em meados da década de 1970, quando excertos do seu livro confessional
"Answered Prayers" foram publicados pela revista "Esquire". Ao revelar em público os pecadilhos privados da elite americana, Capote virou
pária entre a alta sociedade que
sempre o adotou como mascote.
Não lhe perdoaram. Capote nunca
se perdoou. Isolado e deprimido, a
bebida e as drogas fizeram o resto.
Dizem que seu cérebro encolheu.
Literalmente.
Mas a história da literatura é pródiga em mortes e ressurreições.
Quando soube da morte do querido
inimigo, Gore Vidal comentou, com
típico cinismo: é um grande passo
para a sua carreira. Vidal acertou.
Vinte e dois anos depois da morte, a
grande notícia literária é "Travessia
de Verão" (Alfaguara), escrito pelo
autor aos 20 anos e perdido durante
meio século. Não mais. Diretamente
de uma cave de Nova York, o livro
chegou ao Brasil.
História simples: Grady McNeill,
socialite nova-iorquina, recusa viajar com os pais em cruzeiro pela Europa. Grady está apaixonada por
Clyde e deseja ficar na cidade durante o verão. Pormenor importante:
Clyde é tipicamente "working class"
e, além disso, judeu. O diálogo entre
ambos, quando Clyde confessa casualmente o fato, é Capote "vintage": uma mistura de espanto (de
Grady) e de revolta perante o espanto (de Clyde) com cenário a condizer, no zôo de Nova York. O preconceito social é a pior de todas as feras.
E acabará por devorar Grady no
mais doloroso dos paradoxos: sim,
casar com Clyde, o que acontece em
ato impulsivo, significa rebelar-se
contra as sufocantes imposições familiares. Mas será Grady capaz de se
libertar por completo das convenções de classe -da sua classe?
"Travessia de Verão" não é um romance perfeito: está longe, muito
longe, da primeira obra "oficial" de
Capote, "Outras Vozes, Outros
Quartos", que lançou o escritor para
a estratosfera -corria 1948. Mas este primeiro texto não deve ser lido
como mera curiosidade juvenil.
Na história de Grady e Clyde, encontramos as marcas distintivas que
Capote acabaria por cultivar mais
tarde: o retrato da alta sociedade nova-iorquina; a profunda solidão dos
seus membros; o gosto pela reflexão
aforística; a descrição imaginativa,
torrencial; e, naturalmente, o traço
central de Capote: a dificuldade dos
seres humanos para encontrarem, e
aceitarem, a sua identidade.
Por isso Grady nos parece tão
imensamente familiar. Alguns críticos, nos Estados Unidos e na Europa, compararam Grady McNeill a
Holly Golightly, a "Bonequinha de
Luxo" publicada em 1958. A comparação é justa e injusta.
Injusta, desde logo, porque Holly
Golightly é uma farsa: uma mocinha
do Texas que vive a ilusão de ser parte da alta sociedade, ao contrário de
Grady McNeill, um produto genuíno dessa sociedade.
Mas existe um traço comum entre
as duas personagens: como Holly, a
individualidade de Grady está desfeita. Dividida entre o dever social e
o amor a Clyde, o verão em Nova
York será fatal.
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