São Paulo, quarta-feira, 27 de setembro de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Retrato do artista quando jovem

"Travessia de Verão", escrito por Truman Capote aos 20 anos e perdido durante meio século, é lançado no Brasil

TRUMAN CAPOTE morreu em 1984. Mas, na realidade, Capote morreu antes: em meados da década de 1970, quando excertos do seu livro confessional "Answered Prayers" foram publicados pela revista "Esquire". Ao revelar em público os pecadilhos privados da elite americana, Capote virou pária entre a alta sociedade que sempre o adotou como mascote. Não lhe perdoaram. Capote nunca se perdoou. Isolado e deprimido, a bebida e as drogas fizeram o resto. Dizem que seu cérebro encolheu. Literalmente.
Mas a história da literatura é pródiga em mortes e ressurreições. Quando soube da morte do querido inimigo, Gore Vidal comentou, com típico cinismo: é um grande passo para a sua carreira. Vidal acertou. Vinte e dois anos depois da morte, a grande notícia literária é "Travessia de Verão" (Alfaguara), escrito pelo autor aos 20 anos e perdido durante meio século. Não mais. Diretamente de uma cave de Nova York, o livro chegou ao Brasil.
História simples: Grady McNeill, socialite nova-iorquina, recusa viajar com os pais em cruzeiro pela Europa. Grady está apaixonada por Clyde e deseja ficar na cidade durante o verão. Pormenor importante: Clyde é tipicamente "working class" e, além disso, judeu. O diálogo entre ambos, quando Clyde confessa casualmente o fato, é Capote "vintage": uma mistura de espanto (de Grady) e de revolta perante o espanto (de Clyde) com cenário a condizer, no zôo de Nova York. O preconceito social é a pior de todas as feras. E acabará por devorar Grady no mais doloroso dos paradoxos: sim, casar com Clyde, o que acontece em ato impulsivo, significa rebelar-se contra as sufocantes imposições familiares. Mas será Grady capaz de se libertar por completo das convenções de classe -da sua classe?
"Travessia de Verão" não é um romance perfeito: está longe, muito longe, da primeira obra "oficial" de Capote, "Outras Vozes, Outros Quartos", que lançou o escritor para a estratosfera -corria 1948. Mas este primeiro texto não deve ser lido como mera curiosidade juvenil.
Na história de Grady e Clyde, encontramos as marcas distintivas que Capote acabaria por cultivar mais tarde: o retrato da alta sociedade nova-iorquina; a profunda solidão dos seus membros; o gosto pela reflexão aforística; a descrição imaginativa, torrencial; e, naturalmente, o traço central de Capote: a dificuldade dos seres humanos para encontrarem, e aceitarem, a sua identidade.
Por isso Grady nos parece tão imensamente familiar. Alguns críticos, nos Estados Unidos e na Europa, compararam Grady McNeill a Holly Golightly, a "Bonequinha de Luxo" publicada em 1958. A comparação é justa e injusta.
Injusta, desde logo, porque Holly Golightly é uma farsa: uma mocinha do Texas que vive a ilusão de ser parte da alta sociedade, ao contrário de Grady McNeill, um produto genuíno dessa sociedade.
Mas existe um traço comum entre as duas personagens: como Holly, a individualidade de Grady está desfeita. Dividida entre o dever social e o amor a Clyde, o verão em Nova York será fatal.


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