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Cinema/análise/"O Maior Amor do Mundo"
Amor de Diegues é alegoria da alma
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Olhando os absurdos rumos em que o mundo
moderno se encontra,
até dá para entender que um
repórter, crítico, resenhista ou
um jovem sem muita noção de
história se olhe no espelho de
manhã e se veja cercado de ficção. Sim, a realidade do mundo
vira ficção. Nada mais justo então do que exigir da arte e daqueles que a criam o realismo.
Seguindo esse raciocínio, o lixo
tem de ser lixo de verdade, uma
favela tem de ser povoada por
ratos e valas abertas, e o povo
que a habita tem de parecer o
retrato mais fiel do Haiti ou da
Ruanda que conhecemos por
reportagens sensacionalistas.
Eu me pergunto como este
resenhista lidaria com filmes
majestosos como o mar de plástico em "La Nave Va" ou em
"Casanova", ambos de Fellini, o
grande gênio do cinema. Ou como seriam as "duas" Carmens
de Buñuel, quero dizer, as duas
atrizes que alternavam o papel
da cigana do magnífico cineasta
papa do surrealismo? Essa exigência do realismo é um porre,
e Cacá Diegues nunca teve
compromisso com ele, apesar
de nos dar pequenas doses dele
por livre e espontânea vontade.
"O Maior Amor do Mundo"
talvez venha a ser um dos maiores e melhores filmes do mundo. O que me leva a dizer isso?
Talvez não seja tão simples assim explicar. Cacá Diegues é,
antes de mais nada, um filósofo, um poeta, um músico, um
pintor. Ah, sim, é um CINEASTA encantado e desconfiado
(ao mesmo tempo) por aquilo
que sempre o comoveu: a alma
humana. Não, não me expresso
bem. Digo, a alma humana em
suas questões mais primárias e
mais cruéis, frias, calculistas e...
Vulneráveis. Cacá Diegues é
apaixonado pela raça humana,
mas nem por isso declara seu
amor de uma forma vulgar.
Sendo assim, seu compromisso, ou melhor, seu melhor
filme, "O Maior Amor do Mundo" está muito mais ligado a
alegorias, analogias, metáforas,
metalinguagens do que o compromisso do naturalismo que
exigem desse gênio a esta altura
do campeonato. Fico pasmo,
realmente.
Porque para expressar esse
maior amor pelo mundo não se
pode nem passar perto do realismo. Se passar, garanto, vira
um seriado de TV americano,
daqueles que passam à tarde no
canal 1109 aqui em Nova York.
Cacá está muito perto de
García Márquez no sentido de
estar alerta e conhece a sua
"craft" como ninguém!
Ao contrário do resto de sua
obra, estamos diante de vários
paradoxos, dilemas. Um deles
cabe ao Wilker (o ator, não o astrofísico... o personagem -ai,
como me dói usar esse termo,
personagem por ser a mentirinha que é), o de se enxergar
dentro desse "pool" de outros
atores. Ao olhar em volta, enxerga-se num universo. Faz um
auto-reconhecimento e olha
em volta: nota o vasto leque de
interpretações e background
sociais de onde vem essa turma
enorme que o cerca. Parte do
sucesso cabe ao Cacá, de criar o
clima de como encaminhar essas "culturas" e de fazer com
que cada "ser" ali se enxergue
como o resultado de um "produto humano" nessa bola giratória, nesse imenso universo.
Não é por acaso que seu personagem é um astrofísico. Cabe a
ele a análise (ou a observação)
de vários universos: o social, o
cultural, e esse imenso escuro
povoado por gálaxias onde, segundo Haroldo de Campos, tudo é tudo e nada é nada.
Show de Wilker
Wilker dá um show de "method acting", no melhor estilo
Lee Strasberg. Sérgio Brito parece ter se calcado no próprio
Cacá de "Os Herdeiros" (Sérgio
Cardoso), e a meninada segue o
curso normal das coisas, ou seja, reage como se estivesse entrelaçando interpretação com
representação, com uma normalidade de dar inveja a Stanislavski, ou Scorsese, ou Capra.
É simplesmente mágico. E
como explicá-lo sem cair em
banalidades? Não existem fórmulas para fazer um filme tão
belo e cruel e tão catártico.
"O Maior Amor do Mundo" é
sedutor, lindo de morrer, comovente como nunca. Wilker,
um aristocrata, acaba atraído,
assim como um "planeta negro" ("dead star"; aquela massa
que acaba sendo engolida pelo
buraco negro), pelo objeto de
sua repulsa: a pobreza.
Só que dentro da pobreza
existe o encanto, os cantos de
Ezra Pound, o canto do poeta, a
miséria poética (sim, aquela
que todo intelectual idealiza e a
burguesia se culpa por ela, tópico numero um do tratado de
Lênin), e o Carnaval e dilúvio
de "Orfeu", obra do próprio Cacá, é prova disso.
A figura angelical da mãe
morta durante o parto, assim
como a sutileza de meros gestos como o embrulho de lanches feitos para venda... São
coisas tão peculiares a esse contador alegórico da alma humana que quero matar aquele que
lhe exija um lixo assimétrico!
Mais sobre o filme eu não
quero dizer, porque ele é obrigatório, sendo o ponto mais alto na vida do nosso mais importante cineasta.
Se ainda existem aqueles que
acreditam -não acredito-
nessa mentirinha psicótica de
Hollywood de se criar "personagens" e vivê-los até a hora de
abrir o armário de casa, perdão:
procurem um psicanalista.
Os maiores e melhores personagens já existem e estão ali
diante das câmeras de Diegues
com suas próprias vidas, loucos
para dar seus depoimentos travestidos com um texto, o mais
belo de todos, iluminados e fotografados, e dirigidos melhor
que nunca por esse mestre, absoluto mestre do cinema universal que se chama Cacá Diegues.
GERALD THOMAS é diretor e autor teatral.
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