São Paulo, quarta-feira, 27 de setembro de 2006

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Cinema/análise/"O Maior Amor do Mundo"

Amor de Diegues é alegoria da alma

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Olhando os absurdos rumos em que o mundo moderno se encontra, até dá para entender que um repórter, crítico, resenhista ou um jovem sem muita noção de história se olhe no espelho de manhã e se veja cercado de ficção. Sim, a realidade do mundo vira ficção. Nada mais justo então do que exigir da arte e daqueles que a criam o realismo.
Seguindo esse raciocínio, o lixo tem de ser lixo de verdade, uma favela tem de ser povoada por ratos e valas abertas, e o povo que a habita tem de parecer o retrato mais fiel do Haiti ou da Ruanda que conhecemos por reportagens sensacionalistas.
Eu me pergunto como este resenhista lidaria com filmes majestosos como o mar de plástico em "La Nave Va" ou em "Casanova", ambos de Fellini, o grande gênio do cinema. Ou como seriam as "duas" Carmens de Buñuel, quero dizer, as duas atrizes que alternavam o papel da cigana do magnífico cineasta papa do surrealismo? Essa exigência do realismo é um porre, e Cacá Diegues nunca teve compromisso com ele, apesar de nos dar pequenas doses dele por livre e espontânea vontade.
"O Maior Amor do Mundo" talvez venha a ser um dos maiores e melhores filmes do mundo. O que me leva a dizer isso? Talvez não seja tão simples assim explicar. Cacá Diegues é, antes de mais nada, um filósofo, um poeta, um músico, um pintor. Ah, sim, é um CINEASTA encantado e desconfiado (ao mesmo tempo) por aquilo que sempre o comoveu: a alma humana. Não, não me expresso bem. Digo, a alma humana em suas questões mais primárias e mais cruéis, frias, calculistas e...
Vulneráveis. Cacá Diegues é apaixonado pela raça humana, mas nem por isso declara seu amor de uma forma vulgar. Sendo assim, seu compromisso, ou melhor, seu melhor filme, "O Maior Amor do Mundo" está muito mais ligado a alegorias, analogias, metáforas, metalinguagens do que o compromisso do naturalismo que exigem desse gênio a esta altura do campeonato. Fico pasmo, realmente.
Porque para expressar esse maior amor pelo mundo não se pode nem passar perto do realismo. Se passar, garanto, vira um seriado de TV americano, daqueles que passam à tarde no canal 1109 aqui em Nova York.
Cacá está muito perto de García Márquez no sentido de estar alerta e conhece a sua "craft" como ninguém! Ao contrário do resto de sua obra, estamos diante de vários paradoxos, dilemas. Um deles cabe ao Wilker (o ator, não o astrofísico... o personagem -ai, como me dói usar esse termo, personagem por ser a mentirinha que é), o de se enxergar dentro desse "pool" de outros atores. Ao olhar em volta, enxerga-se num universo. Faz um auto-reconhecimento e olha em volta: nota o vasto leque de interpretações e background sociais de onde vem essa turma enorme que o cerca. Parte do sucesso cabe ao Cacá, de criar o clima de como encaminhar essas "culturas" e de fazer com que cada "ser" ali se enxergue como o resultado de um "produto humano" nessa bola giratória, nesse imenso universo.
Não é por acaso que seu personagem é um astrofísico. Cabe a ele a análise (ou a observação) de vários universos: o social, o cultural, e esse imenso escuro povoado por gálaxias onde, segundo Haroldo de Campos, tudo é tudo e nada é nada.

Show de Wilker
Wilker dá um show de "method acting", no melhor estilo Lee Strasberg. Sérgio Brito parece ter se calcado no próprio Cacá de "Os Herdeiros" (Sérgio Cardoso), e a meninada segue o curso normal das coisas, ou seja, reage como se estivesse entrelaçando interpretação com representação, com uma normalidade de dar inveja a Stanislavski, ou Scorsese, ou Capra. É simplesmente mágico. E como explicá-lo sem cair em banalidades? Não existem fórmulas para fazer um filme tão belo e cruel e tão catártico.
"O Maior Amor do Mundo" é sedutor, lindo de morrer, comovente como nunca. Wilker, um aristocrata, acaba atraído, assim como um "planeta negro" ("dead star"; aquela massa que acaba sendo engolida pelo buraco negro), pelo objeto de sua repulsa: a pobreza. Só que dentro da pobreza existe o encanto, os cantos de Ezra Pound, o canto do poeta, a miséria poética (sim, aquela que todo intelectual idealiza e a burguesia se culpa por ela, tópico numero um do tratado de Lênin), e o Carnaval e dilúvio de "Orfeu", obra do próprio Cacá, é prova disso.
A figura angelical da mãe morta durante o parto, assim como a sutileza de meros gestos como o embrulho de lanches feitos para venda... São coisas tão peculiares a esse contador alegórico da alma humana que quero matar aquele que lhe exija um lixo assimétrico!
Mais sobre o filme eu não quero dizer, porque ele é obrigatório, sendo o ponto mais alto na vida do nosso mais importante cineasta. Se ainda existem aqueles que acreditam -não acredito- nessa mentirinha psicótica de Hollywood de se criar "personagens" e vivê-los até a hora de abrir o armário de casa, perdão: procurem um psicanalista.
Os maiores e melhores personagens já existem e estão ali diante das câmeras de Diegues com suas próprias vidas, loucos para dar seus depoimentos travestidos com um texto, o mais belo de todos, iluminados e fotografados, e dirigidos melhor que nunca por esse mestre, absoluto mestre do cinema universal que se chama Cacá Diegues.


GERALD THOMAS é diretor e autor teatral.

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