São Paulo, sábado, 27 de setembro de 2008

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LIVROS

Crítica/"Menino de Lugar Nenhum"

Romance narra complexidades da violência e da adolescência

Autor enfoca amadurecimento de rapaz numa vila inglesa durante o governo Thatcher

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

A adolescência é o período da vida no qual se encerra o tempo livre dedicado ao ócio. Assim, de hora para outra, damos de cara com o princípio da realidade que começa a se delinear na juventude. Encerra-se o idílio da infância, portanto, e começam a nos assombrar os pesadelos adultos: o trabalho (aos necessitados) e os estudos (aos abonados). A realidade nesses casos tem em geral a solidez de um muro -ou, pior, a de um murro. "Menino de Lugar Nenhum", de David Mitchell, observa esse período com a aguda lucidez daquele que, nesse jogo, contribuiu com o rosto enquanto outros entravam com os punhos. Mitchell não esqueceu um só segundo daquela época na qual sonhamos todos em dormir garotos e simplesmente acordar adultos. A adolescência não é fácil para ninguém, mas para alguns pode ser insuportável: acne, submissão, inexpressividade, hormônios em chamas. Na puberdade, o presente parece ser o fim mesmo da vida e se tem a impressão de que o futuro não chegará nunca. No livro, Jason Taylor tem 13 anos e vive com seus pais e a irmã Julia em Black Swan Green (cidadezinha inglesa que dá o título original ao romance). Amigo de Mongol e de Errado, ele pertence ao time dos perdedores, ou seja, das vítimas dos garotos maiores.

Violência e guerra
Para complicar, Taylor tem problemas de fala: ele "trava" toda vez que fica nervoso ou é obrigado a falar em público. E, se é execrado por isto, imagine se os colegas descobrem que ele e Eliot Bolívar, o talentoso poeta do jornal da paróquia, tratam-se da mesma pessoa. Romance de inegável tom autobiográfico, "Menino de Lugar Nenhum" assume interesse incomum nesta época em que o "bullying" (atos de violência física ou psicológica com o objetivo de intimidar ou agredir indivíduos) tornou-se fenômeno corrente em escolas brasileiras. Se por um lado a adolescência representa o ebulir hormonal, também trata do surgimento da ética e da moral como meios reguladores da compreensão do outro e do desconhecido. Em pleno governo Margaret Thatcher (1982), Jason Taylor e seus amigos são assombrados com possibilidades trazidas pela recessão e pela Guerra das Malvinas, ao observar o campeão de popularidade Tom Yew ser convocado e o seu conseqüente destino. Aos olhos de Jason, afinal parece haver saída daquele beco. Simultaneamente ao conflito armado, Taylor assiste ao fracasso do casamento dos pais e começa a intuir a vastidão incompreensível dos sentimentos adultos. É só a vida acenando logo ali, Jason. A crueldade das relações humanas parece não ter fim, atingindo seu paroxismo na violência do comportamento masculino, seja na guerra ou no matrimônio. Brilhante exercício de linguagem (e nada menos pode ser dito da tradução de Daniel Pellizzari), o romance de David Mitchell se insere na linha ficcional inaugurada por "O Apanhador no Campo de Centeio" (1951), o clássico rebelde de J.D. Salinger, e a enriquece com a complexidade própria destes tempos pós-utópicos nos quais nos afogamos num dilúvio de marcas e de consumo desenfreado.

JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra)

MENINO DE LUGAR NENHUM
Autor: David Mitchell
Tradução: Daniel Pellizzari
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (472 págs.)
Avaliação: ótimo

TRECHO

Nosso Ministério das Relações Exteriores anda tentando retomar as negociações, mas a Junta argentina mandou a gente enfiar as negociações no rabo. Vamos ficar sem navios antes que eles fiquem sem Exocets. É nisso que eles apostam. E quem pode afirmar que estão enganados? Do lado de fora do palácio de Leopoldo Galtieri em Buenos Aires, milhares de pessoas ficam cantando "Sentimos a sua grandeza!" o tempo inteiro. [...] Uns jovens riem na frente de nossas câmeras. "Desistam! Vão pra casa! A Inglaterra está doente! A Inglaterra está morrendo! A história diz que as Malvinas são argentinas!" -Que bando de hienas -comentou meu pai. -Se fossem britânicos, mostrariam algum decoro. Pessoas foram mortas, pelo amor de Deus! Essa é a diferença entre nós e eles. Olhem só para isso!

Extraído do romance "Menino de Lugar Nenhum", de David Mitchell



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