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LIVROS
Crítica/"Menino de Lugar Nenhum"
Romance narra complexidades da violência e da adolescência
Autor enfoca amadurecimento de rapaz numa vila inglesa durante o governo Thatcher
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
adolescência é o período da vida no qual se
encerra o tempo livre
dedicado ao ócio. Assim, de hora para outra, damos de cara
com o princípio da realidade
que começa a se delinear na juventude. Encerra-se o idílio da
infância, portanto, e começam
a nos assombrar os pesadelos
adultos: o trabalho (aos necessitados) e os estudos (aos abonados). A realidade nesses casos tem em geral a solidez de
um muro -ou, pior, a de um
murro.
"Menino de Lugar Nenhum",
de David Mitchell, observa esse
período com a aguda lucidez
daquele que, nesse jogo, contribuiu com o rosto enquanto outros entravam com os punhos.
Mitchell não esqueceu um só
segundo daquela época na qual
sonhamos todos em dormir garotos e simplesmente acordar
adultos. A adolescência não é
fácil para ninguém, mas para
alguns pode ser insuportável:
acne, submissão, inexpressividade, hormônios em chamas.
Na puberdade, o presente parece ser o fim mesmo da vida e
se tem a impressão de que o futuro não chegará nunca. No livro, Jason Taylor tem 13 anos e
vive com seus pais e a irmã Julia em Black Swan Green (cidadezinha inglesa que dá o título
original ao romance). Amigo de
Mongol e de Errado, ele pertence ao time dos perdedores, ou
seja, das vítimas dos garotos
maiores.
Violência e guerra
Para complicar, Taylor tem
problemas de fala: ele "trava"
toda vez que fica nervoso ou é
obrigado a falar em público. E,
se é execrado por isto, imagine
se os colegas descobrem que ele
e Eliot Bolívar, o talentoso poeta do jornal da paróquia, tratam-se da mesma pessoa.
Romance de inegável tom autobiográfico, "Menino de Lugar
Nenhum" assume interesse incomum nesta época em que o
"bullying" (atos de violência física ou psicológica com o objetivo de intimidar ou agredir indivíduos) tornou-se fenômeno
corrente em escolas brasileiras.
Se por um lado a adolescência representa o ebulir hormonal, também trata do surgimento da ética e da moral como
meios reguladores da compreensão do outro e do desconhecido. Em pleno governo
Margaret Thatcher (1982), Jason Taylor e seus amigos são
assombrados com possibilidades trazidas pela recessão e pela Guerra das Malvinas, ao observar o campeão de popularidade Tom Yew ser convocado e
o seu conseqüente destino.
Aos olhos de Jason, afinal parece haver saída daquele beco.
Simultaneamente ao conflito
armado, Taylor assiste ao fracasso do casamento dos pais e
começa a intuir a vastidão incompreensível dos sentimentos adultos. É só a vida acenando logo ali, Jason. A crueldade
das relações humanas parece
não ter fim, atingindo seu paroxismo na violência do comportamento masculino, seja na
guerra ou no matrimônio.
Brilhante exercício de linguagem (e nada menos pode
ser dito da tradução de Daniel
Pellizzari), o romance de David
Mitchell se insere na linha ficcional inaugurada por "O Apanhador no Campo de Centeio"
(1951), o clássico rebelde de
J.D. Salinger, e a enriquece
com a complexidade própria
destes tempos pós-utópicos
nos quais nos afogamos num
dilúvio de marcas e de consumo desenfreado.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra)
MENINO DE LUGAR NENHUM
Autor: David Mitchell
Tradução: Daniel Pellizzari
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (472 págs.)
Avaliação: ótimo
TRECHO
Nosso Ministério das
Relações Exteriores anda
tentando retomar as
negociações, mas a Junta
argentina mandou a gente
enfiar as negociações no rabo.
Vamos ficar sem navios antes
que eles fiquem sem Exocets.
É nisso que eles apostam. E
quem pode afirmar que estão
enganados? Do lado de fora do
palácio de Leopoldo Galtieri
em Buenos Aires, milhares de
pessoas ficam cantando
"Sentimos a sua grandeza!" o
tempo inteiro. [...] Uns jovens
riem na frente de nossas
câmeras. "Desistam! Vão pra
casa! A Inglaterra está doente!
A Inglaterra está morrendo! A
história diz que as Malvinas
são argentinas!"
-Que bando de hienas
-comentou meu pai. -Se
fossem britânicos,
mostrariam algum decoro.
Pessoas foram mortas, pelo
amor de Deus! Essa é a
diferença entre nós e eles.
Olhem só para isso!
Extraído do romance "Menino de Lugar
Nenhum", de David Mitchell
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