São Paulo, sábado, 27 de setembro de 2008

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crítica

Dramaturgo oscila entre comoção e clichê

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Pássaros de Vôo Curto" é o segundo romance do dramaturgo, cronista e roteirista Alcione Araújo. Pelo fôlego demonstrado nas 461 páginas do livro, ele pareceria ter nascido para o gênero. Não é, porém, o caso. O romance tem marcas da crônica e do teatro, sem que a extensão lhe permita resolver as contradições geradas pelo hibridismo. A narrativa acompanha uma cantora de ópera decadente que cruza o Brasil profundo fazendo apresentações em cidades perdidas, sob auspícios eleitoreiros de políticos locais. Além dela, a trupe é composta de sua fiel governanta, fervidamente beata; um pianista americano bêbado que já fora uma promessa do jazz; e o motorista do velho caminhão adaptado em que viajam. O argumento, pois, é bem "Bye Bye Brasil". Mas, diferentemente do filme, o romance se estrutura com base na alternância de fragmentos narrativos do passado de cada uma das personagens. O intervalo temporal coberto pelo conjunto dos fragmentos é de cerca de cem anos. Começa no final do século 19, quando se instala em Minas uma mineradora inglesa, e avança até o momento em que a trupe faz suas últimas apresentações em lugares tão sintomáticos como Desterro, Sumidouro, e uma aldeia Ikpeng, no Xingu.

Estereótipos
Os acontecimentos pessoais são balizados por eventos conhecidos da história política brasileira e mundial (o golpe e o suicídio de Getúlio, o início e o fim da Segunda Guerra...), bem como da mitologia mineira e carioca (os cantores da Rádio Nacional, a época de ouro dos cassinos, o surgimento da bossa nova, os rendez-vous famosos de BH, a agitação da rua da Bahia...). Formam blocos que dizem respeito menos à história ou à lembrança pessoal que aos clichês sentimentais da nação. O balizamento, assim, escorre pela narrativa, sem dar liga. Empresta-lhe um ar de crônica pitoresca, raramente articulada às histórias das personagens. Estas, aliás, também se deixam penetrar pelo pitoresco. Por exemplo, o grande escândalo na vida de Vittorio, que viria a ser amante e mecenas da cantora, foi um crime passional "à mineira". Ou seja, as marcações estereotipadas da crônica diluem a narrativa e as personagens oscilam entre o típico e o anódino. Dizendo assim, porém, o livro parece pior do que é. Já quase ao final, alguns capítulos são bem superiores ao conjunto. Isto fica evidente quando a trupe chega a Desterro e a narração enfim se entrega à cantora no palco. O fragmento relativo a esse passo, entre as páginas 388 e 401, é hilário e comovente ao mesmo tempo. Lembra a estupenda cena de "Nashville", de Robert Altman, quando a cantora interpretada por Ronee Blakley alucina no palco e exibe aos fãs contrariados uma patética fragilidade. Será acaso este brilhante capítulo do veterano dramaturgo Alcione Araújo um relato de palco? Seja como for, se ao longo do livro a crônica banaliza o romanesco, o certo é que a narração teatral sabe encenar a banalidade em seu aspecto mais contundente e tocante. Só então, possivelmente tarde demais, o romance alça vôo.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas (SP) e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp)

PÁSSAROS DE VÔO CURTO
Autor: Alcione Araújo
Editora: Record
Quanto: R$ 52 (461 págs.)
Avaliação: regular



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