São Paulo, sábado, 27 de setembro de 2008 |
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RODAPÉ LITERÁRIO Além do círculo das palavras
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE COLUNISTA DA FOLHA NÃO DESISTIR diante do informe e do caótico, passar de uma matéria a outra, de uma obra à seguinte é sempre um ato de coragem criadora. É um gesto de insatisfação, de inconformismo, de exploração teimosa contra as estatísticas que, se genuíno, não deve passar despercebido. A aproximação entre palavra, música e escultura na obra de Nuno Ramos inclui-se nesta linhagem essencial, tanto fazendo se a ênfase recai sobre a visualidade (caso de "Fala", conjunto de cinco instalações que puderam ser visitadas em Brasília, no CCBB, em julho último) ou sobre escritos que desafiam a definição de gênero, ficção atravessada por sopro lírico e ensaístico, caso de "Ensaio Geral" (2007) e "O Pão do Corvo" (2001). Em seu último livro, o recém-lançado "Ó", voltam motes recorrentes, como a relação entre proferir um discurso e a tentativa de esboçar uma identidade, dar contorno e consistência a vestígios de experiência que querem se refugiar no anonimato anterior à explicação da forma, os fossos que se abrem entre a percepção das coisas, consideradas em sua estranheza e vida própria, e sua formulação lingüística, a ação do hábito, das manias e dos rituais, embotando a sensibilidade e neutralizando a virtualidade do tempo. Os 25 capítulos, prosa porosa organizada em torno de títulos que sugerem variações meditativas sobre filosofemas desconcertantes ("Manchas na pele, linguagem", "Galinhas, justiça" ou "Bonecas russas, lições de teatro"), são pontuados por sete "Ós", textos interjeitivos em que a concretude das imagens e a expressividade lírica assumem o primeiro plano, espécie de denúncia da insuficiência da linguagem discursiva, para não dizer de toda linguagem: "Feito microfonia, um ó que fosse crescendo também nos bichos, nas colméias, no pêlo dos ursos, na lã das mariposas, no chiado do leão sem dentes que segue de longe a própria matilha sem ouvir o ó crescente das hienas que comem, comem neste momento seu próprio cadáver". O elogio sem reservas do traço inseguro da mão esquerda, da perda de tempo contra a pressa industriosa com que os vivos cobram ressentimentos e dívidas a seus mortos, da imperfeição e beleza das coisas arruinadas, do silêncio resistente dos prédios desabitados sugerem que, como bem anota José Antonio Pasta, na orelha do livro, alguma forma de "epifania negativa" ou "reflexão espectral sobre a forma-mercadoria" ronda estes textos, transgressivos, experimentais, na contramão do tempo. Neles, descobrimos um mundo, o nosso, de familiaridade enganosa ou capciosa, revelado em suas falhas, numa linguagem que se reinventa, tateante, a cada passo: "Meu corpo se parece muito comigo, embora eu o estranhe às vezes", Nuno Ramos dixit. Ó Autor: Nuno Ramos Editora: Iluminuras Quanto: R$ 44 (415 págs.) Avaliação: ótimo
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