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CONTARDO CALLIGARIS
Saber ler e escrever
Em 2003, o governo lançou o
programa "Por um Brasil Alfabetizado". Desde então, periodicamente, há cerimônias solenes
de formatura para os adultos que
aprenderam a ler e a escrever e
para os que completaram o ensino fundamental. Com freqüência, o próprio presidente Lula felicita a turma.
No sábado passado, no Rio de
Janeiro, o presidente disse aos
alunos que, uma vez formados,
eles poderão mais facilmente encontrar emprego e ganhar mais
do que um salário mínimo. Além
disso, o progresso na qualificação
dos trabalhadores contribuirá para o desenvolvimento nacional.
Um mês atrás, em circunstâncias análogas, o presidente evocou uma lembrança tocante: seu
pai, analfabeto, comprava o jornal para que os outros não descobrissem que ele não sabia ler. Juntando Fome Zero, programa de
alfabetização e campanha da auto-estima brasileira, ele afirmou:
"Comer e estudar possibilitam ter
força para trabalhar. Possibilitam estufar o peito e dizer "eu sou
brasileiro e não desisto nunca'".
Não há como não concordar: o
analfabetismo é injustamente vivido como vergonha, o esforço de
quem se alfabetiza na idade adulta pode e deve ser motivo de grande orgulho e, certamente, é mais
fácil trabalhar comendo e sabendo ler e escrever.
Mas resta que, nos discursos citados, nada parece ser dito sobre
o que significa mesmo aprender a
ler (não tenho acesso à íntegra
desses discursos, talvez minha observação valha apenas para a seleção relatada na imprensa).
Algum leitor tomará a dianteira: "Agora ele vai nos dizer que o
importante, na alfabetização,
não é melhorar o acesso ao mercado do trabalho e permitir o
exercício digno da cidadania (saber ler formulários, votar, informar-se). Ele vai dar uma de intelectual e afirmar que o pessoal deve se alfabetizar para ler Camões
e Machado de Assis".
É quase isso. Explico.
No começo dos anos 1970, em
Genebra, fiz parte de um pequeno
grupo de acadêmicos italianos
que organizou um curso noturno
para os imigrantes que quisessem
completar o ensino fundamental.
Leitores de Paulo Freire, tínhamos a ambição de fazer de nossas
aulas um momento de "conscientização" (era a palavra na moda).
Pois bem, as pequenas turmas
que ajudamos se interessavam,
obviamente, pelo diploma (que
era a condição para se candidatar
a um emprego público na Itália).
Mas o que todos queriam, o que
os motivava, depois de um trabalho brutal, a passar as noites numa sala de aula era outra coisa.
Foi a pedido deles que inventei
um jeito de resumir muitos daqueles livros sem os quais o mundo fica mais triste e pobre. Resumi
a "Divina Comédia", "Dom Quixote", "Crime e Castigo" e "Moby
Dick". Resumi "Édipo Rei" e a
"Fedra" de Racine. Resumi "O Jovem Törless" e "O Coração das
Trevas". Para cada livro, eu contava a história, mostrava como
ela nos tocava de perto e trazia
um parágrafo ou dois de um momento crucial, para a gente ler e
comentar. Às vezes, mudava as
palavras ou endireitava a sintaxe, simplificava o texto.
Mais pelo fim do curso, a gente
ia ao cinema aos sábado. Depois
do filme, durante noitadas das
quais ainda sinto saudade, no café Landolt, era um festival de nexos e interpretações: "Ele fez que
nem o capitão Ahab", "Ela era
uma Fedra mesmo", "O outro se
tomava pelo Grande Inquisidor"
e por aí vai. As conversas se confundiam com o papo dos estudantes de letras nas mesas ao lado da nossa. Emocionava-me a
familiaridade com a qual tratavam a tradição literária, mas o
fato mais comovedor, para mim e
para eles, era que sua experiência
e sua fruição do mundo eram, de
repente, mais ricas, mais complexas, mais humanas.
Como é possível que, na hora de
promover o programa nacional
de alfabetização, só pareçam importar as vantagens materiais e
sociais do diploma? Qual incompreensão do sentido da cultura e
de seu uso faz que os discursos
que felicitam os candidatos só falem de emprego e mudança de
status?
Não vale responder que os candidatos têm necessidades imediatas (trabalho, arroz e feijão), enquanto a cultura é um luxo: negar esse "luxo" sob pretexto de
que ele não enche a barriga significa negar a humanidade dos que
se sentam num banco de escola.
No discurso de setembro que citei antes, o presidente concluiu:
"Se um filho de pai e mãe analfabetos, um torneiro mecânico de
formação chegou a presidente da
República, vocês acreditem que se
quiserem podem chegar muito
mais alto do que os livros dizem
que vocês podem chegar. É só ter
vontade, e não parem de estudar." (obviamente, o destaque é
meu).
Paradoxo: se os livros dizem
que a gente não pode subir na vida, por que aprender a ler e por
que continuar estudando? Ah,
claro, tinha esquecido: para ganhar um emprego melhor...
Não sei de quais livros o presidente está falando, mas sei que os
livros de que gosto (e que meu
alunos de Genebra gostavam)
não dizem ao leitor que ele não
pode subir na vida. Ao contrário,
esses livros ensinam a sonhar, a
viver a vida mais plenamente e a
levá-la a sério. Em suma, eles ensinam a ser gente. Das várias maneiras de "subir na vida", é a que
mais vale a pena.
@ - ccalligari@uol.com.br
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