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"Os escritores são uma raça à parte"
Em entrevista à Folha, o albanês Ismail Kadaré diz que a grande literatura e a mediana devem ser separadas como castas
Chega ao Brasil "Crônica na Pedra", livro sobre a Albânia na Segunda Guerra; para Kadaré, entrada de seu país na UE traria paz aos Bálcãs
Visar Kryeziu - 3.jul.2005/ Associated Press
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O escritor albanês Ismail Kadaré, cujo livro 'Crônica na Pedra' acaba de ser lançado no Brasil
GABRIELA LONGMAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS
"Podemos escavar com facilidade o seu solo, mas penetrar
sua alma, isso jamais." A frase
colocada por Ismail Kadaré na
boca de um padre italiano de
seu romance "O General do
Exército Morto" define a personalidade do povo albanês.
Define também a personalidade do próprio autor, nome-chave da literatura albanesa e um
dos mais importantes da literatura mundial contemporânea.
Exilado político na França
nos anos 90, o escritor agora divide seu tempo entre Paris e Tirana, capital da Albânia. Escrito nos anos 70, seu "Crônica na
Pedra" -retrato do país na Segunda Guerra pelos olhos de
um pré-adolescente- é lançado no Brasil, com tradução direta do albanês. Em seu apartamento, Kadaré, 72, falou à Folha sobre seu país, o stalinismo
e, acima de tudo, literatura.
FOLHA - O sr. costuma dizer que
sua formação literária caminha entre Macbeth e Dom Quixote. Como
define essa mistura ?
ISMAIL KADARÉ - Trata-se sempre de caminhar entre o trágico
e o grotesco. É um bom coquetel. A literatura precisa dos
dois. Na vida é a mesma coisa,
ainda que nem tudo que está na
vida precise estar na literatura.
A literatura é mais importante
do que a vida.
FOLHA - Vários paralelos foram feitos comparando a sua literatura ao
realismo mágico latino-americano.
O sr. concorda com a aproximação?
KADARÉ - Não sei, me parece
um pouco ingênuo. Dante Alighieri fazia uma espécie de realismo mágico, Kafka e a mitologia grega também. Não sei por
que essa denominação ganhou
tanta força. O lado irrealista faz
parte da literatura. Ela não pode nem mesmo existir sem essa
dimensão transcendental, mágica, onírica, oculta.
FOLHA - Cabe aos grandes escritores juntar realidade e irrealidade?
KADARÉ - Os escritores são uma
raça à parte. A literatura não é
democrática. Ela é baseada na
desigualdade. Se você escutar
que a França tem mil escritores, isso não é boa notícia. Esse
número precisa diminuir. A literatura é baseada numa seleção sem piedade, que guarda o
grande valor. Até aceito a literatura medíocre ou média pois
ela cumpre uma função, atrai e
garante leitores que um dia poderão ir em direção à grande literatura. O perigo começa
quando a literatura mediana
quer impor suas leis. É preciso
que esses universos fiquem
bem separados, sem intervir
um no outro, como castas.
FOLHA - A Europa ocidental ainda
vê os Bálcãs como um incômodo, como um problema a resolver?
KADARÉ - Acho que sim, embora o interesse da Europa pelos
Bálcãs venha crescendo. Os
Bálcãs são uma realidade. É
uma parte incômoda, mas é
uma parte. Dizemos que é o
quintal da Europa, mas o quintal é parte da casa. Sem tranqüilidade nos Bálcãs não há tranqüilidade para a Europa.
FOLHA - O sr. é favorável à entrada
da Albânia na União Européia?
KADARÉ - Sim. É a única esperança para que os Bálcãs entrem
numa via de desenvolvimento
normal. Ironicamente, o povo
mais pró-europeu e ao mesmo
tempo mais pró-americano são
os albaneses. É curioso, porque
era o povo mais stalinista. Há
uma lógica interna para isso.
Passamos de um extremo a outro, como uma reação.
FOLHA - E como foi a questão da
dissidência ao regime no seu caso?
KADARÉ - Na Albânia não se podia ser publicamente contra o
regime, era totalitarismo absoluto. Mas pela literatura era
possível contestar o regime.
Tudo que escrevi e publiquei
foi feito nesse contexto. Nunca
fiz ataques diretos ao Estado,
somente ironias escondidas,
um pouco mais evidentes às vezes. Quando me perguntam se
sou um dissidente digo não.
Sou um escritor normal, num
país anormal. E isso já é muito.
FOLHA - Mas o sr. teve um período
de apoio ao regime, não?
KADARÉ - Desde o começo tive
reservas ao regime, ainda que
elas não fossem tão conscientes. Se você ama a literatura,
não pode amar o regime comunista. Não pode amar ao mesmo tempo Macbeth e a direção
do comitê central de Stalin.
FOLHA - Muitos dos seus livros
abordam o Império Otomano. Podemos comparar o imperialismo americano atual aos impérios clássicos ?
KADARÉ - O Império Otomano
era atroz, sem aspectos positivos. Eu recuso essa comparação. Essa moda de chamar os
EUA de império é um vestígio
da Guerra Fria. A base da propaganda stalinista era buzinar
"imperialismo americano" nas
nossas orelhas. Na França, ouço a mesma propaganda tantos
anos depois. É uma paixão exagerada. Os EUA são uma grande potência e, como toda grande potência, eles têm o bem e o
mal em grandes proporções.
Mas a moda me soa retrógrada.
FOLHA - O que achou da escolha de
Le Clézio para o Nobel de Literatura?
KADARÉ - Conheço este escritor, sei que é sério. Mas li seu
primeiro livro há muitos anos e
quase nada depois. Confesso
que não me apaixonei. Sei que
ele é respeitado na França, mas
sem ardência. Enfim, o Nobel
faz suas escolhas.
FOLHA - O sr. poderia falar um pouco sobre "Crônica na Pedra"?
KADARÉ - É um livro sobre a Albânia, mas também sobre a
guerra, a saída do narrador da
infância, sobre tradições. Prefiro que os leitores descubram
por si próprios.
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