São Paulo, sábado, 27 de novembro de 2004

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RODAPÉ

Humor terminal de um virtuose das palavras

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Num dos contos de "Até Nunca Mais por Enquanto", de Luís Antônio Giron, o narrador descreve a si mesmo como alguém que "procura fórmulas modernas abolindo o sujeito de suas narrativas, tentando imitar os dois ou três romances de vanguarda já traduzidos no Brasil".
Irônica, a frase aparece em "Letra Morta", mais longo e vertiginoso de um conjunto de 20 textos. Simples efeito humorístico? Suicídio autoral de quem desdiz aquilo que escreveu? Ou autocrítica que serve para toda a literatura brasileira, colocando nossos vanguardistas no espelho do provincianismo ilustrado?
Sem deixar de ser tudo isso, o livro vai bem além. Seus contos são marcados pela sintaxe desordenada e pelo léxico rebuscado, resultando numa combinação de velocidade narrativa e anacronismo: fluxos de consciência de mentes mofinas, personagens tragadas pelo tempo, natimortos esperneando sem qualquer possibilidade de serem redimidos por uma linguagem em que modernidade rima com degenerescência.
É difícil esquecer que Giron é um jornalista e crítico especializado na ópera e no teatro do século 19, organizador do "Teatro de Gonçalves Dias" e autor de "Minoridade Crítica" (sobre a cena cultural oitocentista). Pois boa parte do efeito cômico de seus contos está na exploração do "glamour" empoeirado de personagens que vivem no tempo das divas e dos tenores.
Essa ambiência já dera o tom do romance "Ensaio de Ponto". Ali, Saturnino Praxedes -nome que por si só recende a naftalina- é um "ponto" que, com o fim do "teatro rebolado", vê o melancólico desaparecimento de sua profissão (que consistia em "soprar" diálogos para os atores).
Em "Ensaio de Ponto" havia um humor franco, carnavalesco. Em "Até Nunca Mais por Enquanto", nem mesmo os contos que fazem referência ao universo da ópera e do "vaudeville" provocam risos. Em compensação ouvem-se as gargalhadas sarcásticas das personagens: o humor terminal dos condenados à morte, dos internos de um hospício, dos pervertidos.
Em "Pseudo-Tobolli", o narrador usurpa o lugar de um famoso tenor morto e, em "O Conde Molhado", está apaixonado por Galli, cantora e atriz que primeiro interpretou "Carmen", de Bizet. Mas esses enredos -nos quais aparecem várias referências ao repertório operístico- são apenas pontos de partida para uma escrita assolada por fantasmas, na qual as fronteiras temporais são abolidas.
Todos os contos tendem ao discurso desarticulado, a um ilogismo cujo antecedente imediato na literatura brasileira é Rosário Fusco, misturando vozes de diferentes personagens sem que a alternância fique clara -porque essas personagens habitam uma zona sombria, apartada das relações convencionais e dos conteúdos comunicáveis.
Tivessem sido escritos por um estreante, pareceria um maneirismo gratuito. No caso de um autor que mantém uma relação virtuosística com as palavras (leia-se "Poer-Luna", paródia das "Galáxias" de Haroldo de Campos), as tais "fórmulas modernas" adquirem outro sentido: são o dialeto de uma alienação irrecorrível.
Em larga medida, o estranhamento dos contos se deve ao gosto de Giron por um vocabulário arcaizante (basta citar títulos como "Tião, Corvo e Capeplufos" ou "Creador & Barregãos"). Mas sua "tábua de pesadelos" inclui, sobretudo, personagens ilhadas em obsessões -como o menino do conto "Do Século Crescendo" (confinado na banheira de um sótão, brincando com soldadinhos que figuram "batalhas e morticínios"), o professor de "Braço Forte em Teu Seio" (apresentando aos alunos um séquito de militares torturadores que visitam a escola) ou o narrador de "Apologia de Betty Boop" (copulando em sonho com essa personagem de animação, que embalava fantasias infantis ao ritmo do ragtime).
Os contos de "Até Nunca Mais por Enquanto" não estabelecem pactos fáceis com o leitor (desfechos elucidadores, linguagem transparente). Enfim, nem sempre compreendemos o que querem dizer estes textos que, todavia, dizem o que quer que seja com força hipnotizante.


Até Nunca Mais por Enquanto
    Autor: Luís Antônio Giron Editora: Record Quanto: R$ 29,90 (206 págs.) Lançamento: 29/11, às 19h30, na Casa do Saber (r. Dr. Mário Ferraz, 414, SP, tel. 0/xx/11/3707-8900)


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