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RODAPÉ
Humor terminal de um virtuose das palavras
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Num dos contos de "Até Nunca Mais por Enquanto", de
Luís Antônio Giron, o narrador
descreve a si mesmo como alguém que "procura fórmulas modernas abolindo o sujeito de suas
narrativas, tentando imitar os
dois ou três romances de vanguarda já traduzidos no Brasil".
Irônica, a frase aparece em "Letra Morta", mais longo e vertiginoso de um conjunto de 20 textos.
Simples efeito humorístico? Suicídio autoral de quem desdiz aquilo
que escreveu? Ou autocrítica que
serve para toda a literatura brasileira, colocando nossos vanguardistas no espelho do provincianismo ilustrado?
Sem deixar de ser tudo isso, o livro vai bem além. Seus contos são
marcados pela sintaxe desordenada e pelo léxico rebuscado, resultando numa combinação de
velocidade narrativa e anacronismo: fluxos de consciência de
mentes mofinas, personagens tragadas pelo tempo, natimortos esperneando sem qualquer possibilidade de serem redimidos por
uma linguagem em que modernidade rima com degenerescência.
É difícil esquecer que Giron é
um jornalista e crítico especializado na ópera e no teatro do século
19, organizador do "Teatro de
Gonçalves Dias" e autor de "Minoridade Crítica" (sobre a cena
cultural oitocentista). Pois boa
parte do efeito cômico de seus
contos está na exploração do "glamour" empoeirado de personagens que vivem no tempo das divas e dos tenores.
Essa ambiência já dera o tom do
romance "Ensaio de Ponto". Ali,
Saturnino Praxedes -nome que
por si só recende a naftalina- é
um "ponto" que, com o fim do
"teatro rebolado", vê o melancólico desaparecimento de sua profissão (que consistia em "soprar"
diálogos para os atores).
Em "Ensaio de Ponto" havia um
humor franco, carnavalesco. Em
"Até Nunca Mais por Enquanto",
nem mesmo os contos que fazem
referência ao universo da ópera e
do "vaudeville" provocam risos.
Em compensação ouvem-se as
gargalhadas sarcásticas das personagens: o humor terminal dos
condenados à morte, dos internos
de um hospício, dos pervertidos.
Em "Pseudo-Tobolli", o narrador usurpa o lugar de um famoso
tenor morto e, em "O Conde Molhado", está apaixonado por Galli,
cantora e atriz que primeiro interpretou "Carmen", de Bizet. Mas
esses enredos -nos quais aparecem várias referências ao repertório operístico- são apenas pontos de partida para uma escrita assolada por fantasmas, na qual as
fronteiras temporais são abolidas.
Todos os contos tendem ao discurso desarticulado, a um ilogismo cujo antecedente imediato na
literatura brasileira é Rosário Fusco, misturando vozes de diferentes personagens sem que a alternância fique clara -porque essas
personagens habitam uma zona
sombria, apartada das relações
convencionais e dos conteúdos
comunicáveis.
Tivessem sido escritos por um
estreante, pareceria um maneirismo gratuito. No caso de um autor
que mantém uma relação virtuosística com as palavras (leia-se
"Poer-Luna", paródia das "Galáxias" de Haroldo de Campos), as
tais "fórmulas modernas" adquirem outro sentido: são o dialeto
de uma alienação irrecorrível.
Em larga medida, o estranhamento dos contos se deve ao gosto de Giron por um vocabulário
arcaizante (basta citar títulos como "Tião, Corvo e Capeplufos"
ou "Creador & Barregãos"). Mas
sua "tábua de pesadelos" inclui,
sobretudo, personagens ilhadas
em obsessões -como o menino
do conto "Do Século Crescendo"
(confinado na banheira de um sótão, brincando com soldadinhos
que figuram "batalhas e morticínios"), o professor de "Braço Forte em Teu Seio" (apresentando
aos alunos um séquito de militares torturadores que visitam a escola) ou o narrador de "Apologia
de Betty Boop" (copulando em
sonho com essa personagem de
animação, que embalava fantasias infantis ao ritmo do ragtime).
Os contos de "Até Nunca Mais
por Enquanto" não estabelecem
pactos fáceis com o leitor (desfechos elucidadores, linguagem
transparente). Enfim, nem sempre compreendemos o que querem dizer estes textos que, todavia, dizem o que quer que seja
com força hipnotizante.
Até Nunca Mais por Enquanto
Autor: Luís Antônio Giron Editora: Record
Quanto: R$ 29,90 (206 págs.)
Lançamento: 29/11, às 19h30, na Casa
do Saber (r. Dr. Mário Ferraz, 414, SP, tel. 0/xx/11/3707-8900)
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