São Paulo, sábado, 27 de novembro de 2004

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FESTIVAL DE BRASÍLIA

Cópia restaurada do clássico de Glauber Rocha mostra a força narrativa e estilo operístico do filme

"Terra em Transe" ofusca o cinema atual

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

O grande filme do 37º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro tem 37 anos e chama-se "Terra em Transe".
Não, não se trata de saudosismo. Exibido na quinta-feira à tarde, em linda cópia recém-restaurada, o filme de Glauber Rocha mostrou um vigor e uma atualidade capazes de ofuscar todos os longas-metragens da competição, inclusive e sobretudo "Cabra Cega", de Toni Venturi, apresentado poucas horas depois e que trata, grosso modo, do mesmo tema (ditadura, guerrilha).
Não que o longa de Venturi não tenha causado impacto. Foi aplaudido calorosamente pela platéia que lotou o Cine Brasília e é forte candidato ao prêmio do júri popular.
"Cabra Cega" conta a história de um guerrilheiro ferido (o ótimo Leonardo Medeiros), escondido no apartamento de um simpatizante, em São Paulo. Enquanto ele convalesce, ajudado por uma camarada pela qual inevitavelmente se apaixona (Débora Duboc), a guerrilha se esfacela à sua volta e o país mergulha na fase mais brutal da ditadura.
O filme emocionou o público, predominantemente jovem. Para quem tinha visto "Terra em Transe", porém, "Cabra Cega" chegou bastante amortecido.
O filme de Glauber, ambientado numa república latino-americana imaginária, foi feito no calor da hora (1967) e antecipa temas que só viriam à tona com força anos depois, como a tortura, a guerrilha e até um líder popular que chega ao poder e trai seu ideário em nome de compromissos com os poderosos.
"Cabra Cega", ao contrário, é uma reconstituição "a posteriori", uma interpretação realizada por gente jovem o bastante para ter estudado nos bancos escolares os fatos narrados.
O tom profético de Glauber é acompanhado, ou melhor, é construído por um estilo operístico, barroco, delirante, de invenção audiovisual ininterrupta.
A interpretação exaltada dos atores (e que atores: Jardel Filho, Glauce Rocha, Paulo Autran, José Lewgoy) é potencializada pelos enquadramentos ousados, pela inquietude da câmera na mão (de Dib Lufti), pela montagem vibrante e descontínua (de Eduardo Escorel), pelo brusco jogo de contrastes entre ruído e silêncio, pela alternância entre o fôlego épico e a asfixia intimista.
Para quem não sabe, essa ópera selvagem de Glauber Rocha narra a crise de um personagem trágico, o poeta e militante de esquerda Paulo Martins (Jardel Filho), dividido entre a poesia e a ação revolucionária, entre os prazeres burgueses e o trabalho político.
Alternando a busca da pureza com uma atração pelo hedonismo e pela corrupção moral, Martins oscila também entre duas mulheres, a engajada Sara (Glauce Rocha, magnífica) e a burguesa Silvia (Danuza Leão).
Não é só "Cabra Cega" que empalidece diante de "Terra em Transe", mas boa parte da produção cinematográfica atual, não só no Brasil. Parecem meios de expressão diferentes.
Essa obra-prima admirada por gente como Godard e Scorsese foi pouco vista no Brasil em sua integridade. Além de ter sofrido com a censura em sua época, seu negativo foi destruído por um incêndio num laboratório francês.
A versão lançada em VHS pela Globo Vídeo tinha lacunas e rolos trocados. A cópia exibida em Brasília, que deverá entrar em cartaz em breve, foi feita em alta definição a partir de uma cópia preservada em Berlim.
A restauração, coordenada por Paloma Rocha, filha de Glauber, é a primeira de uma série. O Grupo Novo de Cinema e TV promete restaurar também "O Dragão da Maldade", "Barravento" e "A Idade da Terra".

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