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ANÁLISE
Músico sobrevive ao próprio destino
PAULO VIEIRA
especial para a Folha
Curtis Mayfield pode realmente
ter morrido num hospital da
Geórgia, como dizem os telegramas. Mas, atenção, Curtis Mayfield não se entrega assim tão fácil.
Desde que, atingido por um
poste de iluminação de seu próprio set, em 1990, tornou-se tetraplégico, pensava-se que o autor de
"People Get Ready" (aquela que o
leitor deve ter ouvido em versão
pegajosa de Jeff Beck e Rod Stewart) era carta fora do baralho.
Mas ele teve ganas de voltar, em
1996, com "New World Order",
disco nada preguiçoso para alguém que, do pescoço para baixo,
não se movia.
Mayfield cantou, orientou e interferiu na produção. Teve de
abandonar a guitarra, mas ainda
contava com seus ouvidos e o maravilhoso falsete que tantos depois usariam. Chamou alguns
parceiros como Aretha Franklin e
Narada Michael Walden. Voltou
a exaltar a consciência negra e repassou alguns clássicos dos 70.
Este ano, vinha reunindo idéias
para um novo disco, a despeito de
ter sido obrigado a amputar a perna direita, infeccionada. Pretendia que Eric Clapton, fã manifesto, dividisse uma faixa.
Pode-se pensar que Mayfield,
assim como tantos outros artífices do soul, jamais conseguira
atualizar seu som melódico e de
arranjos incrivelmente sofisticados, nos anos 90. Mas, pensando
bem, o homem sempre dava um
jeito de ressuscitar. Mayfield tem
sido, junto com Sly Stone e George Clinton, o maior manancial de
bases musicais para hits de rap.
Para ficar num exemplo definidor, toda a abertura de
"Doggystyle", de Snoop Doggy
Dogg, clássico fundador do
gangsta rap, se apóia em Mayfield.
Não ganhou um centavo por isso, mas não é incorreto dizer que
é nesse momento que Mayfield
começa a se tornar ubíquo, sobrevivendo ao seu próprio destino.
Houve um tributo, em 1994,
mas Isley Brothers, Elton John,
Aretha Franklin apenas puderam
expressar sua reverência e comiseração pelo mestre, sem atingir a
qualidade das interpretações do
próprio autor.
Apesar da discrição, Curtis
Mayfield se tornou uma das
maiores expressões da consciência negra com a trilha de "Superfly", cujo argumento falava do
racha da comunidade negra do
Harlem motivada pelo comércio
de drogas. Vestiu a bandeira dos
EUA, considerou-o um país possível para os negros, atacou a hipocrisia racial.
Mayfield foi um dos que deram
cara musical à sua região, Chicago, dominada por músicos de
blues -e mais tarde por produtores de house.
Mayfield não se entrega assim
tão fácil. A década pode estar indo
embora, "Superfly" pode estar
planando em outra dimensão,
mas, após o rap e o trip hop, novos gêneros vão surgir igualmente se alimentando desse cara.
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