São Paulo, Segunda-feira, 27 de Dezembro de 1999


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ANÁLISE

Músico sobrevive ao próprio destino

PAULO VIEIRA
especial para a Folha

Curtis Mayfield pode realmente ter morrido num hospital da Geórgia, como dizem os telegramas. Mas, atenção, Curtis Mayfield não se entrega assim tão fácil.
Desde que, atingido por um poste de iluminação de seu próprio set, em 1990, tornou-se tetraplégico, pensava-se que o autor de "People Get Ready" (aquela que o leitor deve ter ouvido em versão pegajosa de Jeff Beck e Rod Stewart) era carta fora do baralho. Mas ele teve ganas de voltar, em 1996, com "New World Order", disco nada preguiçoso para alguém que, do pescoço para baixo, não se movia.
Mayfield cantou, orientou e interferiu na produção. Teve de abandonar a guitarra, mas ainda contava com seus ouvidos e o maravilhoso falsete que tantos depois usariam. Chamou alguns parceiros como Aretha Franklin e Narada Michael Walden. Voltou a exaltar a consciência negra e repassou alguns clássicos dos 70.
Este ano, vinha reunindo idéias para um novo disco, a despeito de ter sido obrigado a amputar a perna direita, infeccionada. Pretendia que Eric Clapton, fã manifesto, dividisse uma faixa.
Pode-se pensar que Mayfield, assim como tantos outros artífices do soul, jamais conseguira atualizar seu som melódico e de arranjos incrivelmente sofisticados, nos anos 90. Mas, pensando bem, o homem sempre dava um jeito de ressuscitar. Mayfield tem sido, junto com Sly Stone e George Clinton, o maior manancial de bases musicais para hits de rap. Para ficar num exemplo definidor, toda a abertura de "Doggystyle", de Snoop Doggy Dogg, clássico fundador do gangsta rap, se apóia em Mayfield.
Não ganhou um centavo por isso, mas não é incorreto dizer que é nesse momento que Mayfield começa a se tornar ubíquo, sobrevivendo ao seu próprio destino.
Houve um tributo, em 1994, mas Isley Brothers, Elton John, Aretha Franklin apenas puderam expressar sua reverência e comiseração pelo mestre, sem atingir a qualidade das interpretações do próprio autor.
Apesar da discrição, Curtis Mayfield se tornou uma das maiores expressões da consciência negra com a trilha de "Superfly", cujo argumento falava do racha da comunidade negra do Harlem motivada pelo comércio de drogas. Vestiu a bandeira dos EUA, considerou-o um país possível para os negros, atacou a hipocrisia racial.
Mayfield foi um dos que deram cara musical à sua região, Chicago, dominada por músicos de blues -e mais tarde por produtores de house.
Mayfield não se entrega assim tão fácil. A década pode estar indo embora, "Superfly" pode estar planando em outra dimensão, mas, após o rap e o trip hop, novos gêneros vão surgir igualmente se alimentando desse cara.


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