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Crítica/"O Livro Negro"
Obra de Pamuk tenta definir o "ser"
Conceito de individualidade é tema de romance erudito, com narrativa policial, escrito pelo Nobel turco em 1990
ALBERTO MUSSA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Talvez não muita gente
se lembre de que o breve romance "O Castelo
Branco", do turco Orhan Pamuk, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2006, teve
sua primeira edição brasileira
há cerca de 15 anos. É verdade
que, na época, o livro não chamou muita atenção. O Oriente
e o mundo muçulmano ainda
não estavam na moda.
Foi apenas a partir da publicação de "Meu Nome é Vermelho" e da vinda de Pamuk ao
Brasil, para participar da Flip
(Festa Literária Internacional
de Paraty), em 2005, que sua
obra passou a ser sistematicamente traduzida por aqui. Depois de "Neve" e de uma segunda tradução de "O Castelo
Branco", a Companhia das Letras lança agora "O Livro Negro" -um dos romances capitais do autor.
Na Istambul da segunda metade do século 20, o advogado
Galip procura a mulher, Rüya, e
o primo Celâl, famoso jornalista, que desapareceram sem deixar vestígios. Nessa busca, Galip aos poucos assume a personalidade do primo, a ponto de ir
morar no seu apartamento,
vestir suas roupas e até a escrever crônicas da coluna de Celâl.
Entre os capítulos que narram a singular aventura de Galip, lemos algumas das célebres
crônicas de Celâl, que nos desvendam um vasto panorama da
história e da cultura turcas e
que são a chave do romance.
A narrativa tem um ritmo policial. E o desfecho, teoricamente previsível, não deixa de
surpreender nem de emocionar. São essas páginas finais,
que desvendam o mistério, as
que o narrador deseja que fossem cobertas de tinta negra
-daí advindo o título do livro.
Individualidade
O grande tema de "O Livro
Negro" é o conceito de individualidade, o problema da definição do ser. Esse é, aliás, um
tema recorrente na obra de Orhan Pamuk.
Em "O Castelo Branco", por
exemplo, o protagonista é um
veneziano que, no século 17, vira escravo de um homem que é
seu sósia -o que dá ensejo a
uma espécie de fusão entre as
duas personagens. Em "Meu
Nome é Vermelho", o conflito
está entre o conceito de autoria, presente na arte européia, e
os preceitos da tradição oriental -que não permitia a interferência da personalidade dos artistas no traçado das figuras.
Não casualmente, em "O Livro Negro" a epígrafe inicial
menciona o monte Kaf -o
mesmo Qaf da antiga mitologia
árabe, a montanha circular que
delimita a Terra. Nas tradições
muçulmanas posteriores, o
monte Kaf seria considerado a
morada do Simurgh, o pássaro
formado pelos próprios pássaros que o buscam (história que
está no clássico de Attar, várias
vezes citado no texto).
Também não é à toa que uma
das referências literárias fundamentais do romance seja a
história dos hurufi, de cuja
doutrina se deduz que cada texto tem sempre um sentido
oculto e se desdobra num número infinito de textos -o que
faz de todos um texto único.
Metáforas
O emaranhado circular de
histórias do romance (que parecem espelho das outras) reproduz as metáforas do Kaf, do
Simurgh e da doutrina hurufi:
cada indivíduo é um elemento
incaracterístico e indistinguível na totalidade universal.
Se não o mais importante livro de Orhan Pamuk, "O Livro
Negro" se trata sem dúvida de
uma obra instigante e erudita,
que, mesmo lida sem esforço,
faz pensar.
ALBERTO MUSSA é escritor, autor de "O Enigma de Qaf" e "O Movimento Pendular (ambos da
ed. Record).
O LIVRO NEGRO
Autor: Orhan Pamuk
Tradução: Sergio Flaksman
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 62 (528 págs.)
Avaliação: bom
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