São Paulo, sábado, 27 de dezembro de 2008

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Crítica/"O Livro Negro"

Obra de Pamuk tenta definir o "ser"

Conceito de individualidade é tema de romance erudito, com narrativa policial, escrito pelo Nobel turco em 1990

ALBERTO MUSSA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Talvez não muita gente se lembre de que o breve romance "O Castelo Branco", do turco Orhan Pamuk, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2006, teve sua primeira edição brasileira há cerca de 15 anos. É verdade que, na época, o livro não chamou muita atenção. O Oriente e o mundo muçulmano ainda não estavam na moda.
Foi apenas a partir da publicação de "Meu Nome é Vermelho" e da vinda de Pamuk ao Brasil, para participar da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em 2005, que sua obra passou a ser sistematicamente traduzida por aqui. Depois de "Neve" e de uma segunda tradução de "O Castelo Branco", a Companhia das Letras lança agora "O Livro Negro" -um dos romances capitais do autor.
Na Istambul da segunda metade do século 20, o advogado Galip procura a mulher, Rüya, e o primo Celâl, famoso jornalista, que desapareceram sem deixar vestígios. Nessa busca, Galip aos poucos assume a personalidade do primo, a ponto de ir morar no seu apartamento, vestir suas roupas e até a escrever crônicas da coluna de Celâl.
Entre os capítulos que narram a singular aventura de Galip, lemos algumas das célebres crônicas de Celâl, que nos desvendam um vasto panorama da história e da cultura turcas e que são a chave do romance.
A narrativa tem um ritmo policial. E o desfecho, teoricamente previsível, não deixa de surpreender nem de emocionar. São essas páginas finais, que desvendam o mistério, as que o narrador deseja que fossem cobertas de tinta negra -daí advindo o título do livro.

Individualidade
O grande tema de "O Livro Negro" é o conceito de individualidade, o problema da definição do ser. Esse é, aliás, um tema recorrente na obra de Orhan Pamuk.
Em "O Castelo Branco", por exemplo, o protagonista é um veneziano que, no século 17, vira escravo de um homem que é seu sósia -o que dá ensejo a uma espécie de fusão entre as duas personagens. Em "Meu Nome é Vermelho", o conflito está entre o conceito de autoria, presente na arte européia, e os preceitos da tradição oriental -que não permitia a interferência da personalidade dos artistas no traçado das figuras.
Não casualmente, em "O Livro Negro" a epígrafe inicial menciona o monte Kaf -o mesmo Qaf da antiga mitologia árabe, a montanha circular que delimita a Terra. Nas tradições muçulmanas posteriores, o monte Kaf seria considerado a morada do Simurgh, o pássaro formado pelos próprios pássaros que o buscam (história que está no clássico de Attar, várias vezes citado no texto).
Também não é à toa que uma das referências literárias fundamentais do romance seja a história dos hurufi, de cuja doutrina se deduz que cada texto tem sempre um sentido oculto e se desdobra num número infinito de textos -o que faz de todos um texto único.

Metáforas
O emaranhado circular de histórias do romance (que parecem espelho das outras) reproduz as metáforas do Kaf, do Simurgh e da doutrina hurufi: cada indivíduo é um elemento incaracterístico e indistinguível na totalidade universal.
Se não o mais importante livro de Orhan Pamuk, "O Livro Negro" se trata sem dúvida de uma obra instigante e erudita, que, mesmo lida sem esforço, faz pensar.


ALBERTO MUSSA é escritor, autor de "O Enigma de Qaf" e "O Movimento Pendular (ambos da ed. Record).

O LIVRO NEGRO
Autor: Orhan Pamuk
Tradução: Sergio Flaksman
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 62 (528 págs.)
Avaliação: bom


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