São Paulo, sábado, 27 de dezembro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Escultura da sacralidade


Roteiro do longa-metragem "Andrei Rublióv" pode ser lido como tradução literária do cinema religioso de Tarkovski

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

DIVIDIDO EM quadros independentes, nos quais a personagem principal muitas vezes se oculta, o roteiro do filme "Andrei Rublióv" é uma tradução "literária" do traço mais marcante da obra do diretor russo Andrei Tarkovski: o sentido ritualístico de narrativas que falam da ausência e da busca da sacralidade.
Tarkovski (1932-86) é um cineasta que tratou de temas essencialmente modernos com abordagem religiosa, que procurou reintroduzir a "aura" perdida pela obra de arte na era da reprodução técnica (para citar o ensaio em que Walter Benjamin usa o cinema como emblema do estatuto que a estética adquiriu na modernidade).
Sua filmografia inclui um clássico da ficção científica ("Solaris"), uma meditação sobre as ruínas da experiência espiritual ("Nostalgia") e uma parábola sobre o apocalipse nuclear ("O Sacrifício").

Paradigma
Em todos, o olhar contemplativo, o andamento arrastado, pontuado por trilhas extraídas de "A Paixão Segundo São Mateus", de Bach, e do "Réquiem" de Verdi apresentam uma poética que parece ir contra o ritmo que a montagem cinematográfica impôs à representação do mundo contemporâneo, tornando-se paradigma para outras linguagens.
"Esculpir o Tempo" é o nome do ensaio em que o diretor faz uma crítica à "desespiritualização" da arte e uma profissão de fé na criação como meio de atingir a transcendência.
E se pensarmos que a escultura e as artes visuais em geral, com seu caráter estático (que explora mais a duração do que a transformação), vêm na contramão do dinamismo da técnica reprodutiva, compreende-se o lugar que "Andrei Rublióv", filme de 1966, ocupa na trajetória de Tarkovski.
A personagem-título é o mais conhecido autor de ícones religiosos russos -o que por si só já traz uma sugestiva contradição.
Pois se os ícones eram imagens produzidas anonimamente para a liturgia, a escolha de Rublióv (caso raro de reconhecimento "autoral") permite discutir os dilaceramentos do artífice que deseja criar sem rivalizar com a Criação.
Esse "roteiro literário" apresenta 14 capítulos (cinco a mais do que o longa-metragem de 205 minutos) e, por não apresentar as marcações de corte e enquadramento convencionais, pode ser lido como um romance no qual Rublióv e dois outros iconistas, após abandonarem a reclusão do mosteiro, vagam por uma Rússia assolada pelos tártaros no século 15.
Aldeias devastadas, rapto de mulheres e um saltimbanco trucidado pelas autoridades (metáfora do artista como excluído) têm como pano de fundo uma paisagem sulfúrea, uma vastidão pecaminosa que leva Rublióv a se refugiar num mutismo quebrado apenas pela fulguração sobrenatural de seus ícones.


ANDREI RUBLIÓV - ROTEIRO LITERÁRIO
Autor: Andrei Tarkovski
Tradutora: Márcia Vinha
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 44 (312 págs.)
Avaliação: bom


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