São Paulo, quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

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NINA HORTA

Bolachas de barro


Mulheres são as principais comedoras de barro e argila. E as mais gulosas são as grávidas


SAIU NA Folha como "Bolacha de barro é saída contra a fome". Numa pequena coluna, o repórter comenta que em Cité Soleil, bairro mais pobre de Porto Príncipe, uma mulher não se alimenta desde o dia do terremoto a não ser de bolachas de barro. Diz ela que vende as bolachas para os haitianos mais pobres, e são feitas de uma mistura de argila, manteiga e água não muito limpa, amassada em grandes bacias pela família. Depois, são modeladas como pires e secadas ao sol. Não são uma invenção pós-terremoto. A mulher aprendeu a fazê-las com a mãe, que aprendeu com a avó, que aprendeu com a mãe...
Sabia que já havia visto argila em saquinhos e em pedras de formatos diferentes à venda em mercados, já lera sobre o assunto e fui atrás de mais informações. Afinal, achei numa revista "Gastronomica" (California Press) de 2002. Na verdade, se forem pesquisar geofagia (prática de comer substâncias terrestres, como argila, frequentemente para melhorar uma nutrição deficiente em minerais), encontrarão um assunto fascinante e depoimentos interessantes de mulheres que não podem ver um muro de tijolos sem dar uma lambida, outras que já esburacaram toda a parede da casa e aquelas que enchem a boca de água só em pensar no cheirinho de terra lavada depois da chuva. Mulheres são as principais comedoras de barro e argila em quase todo o mundo, como Nepal, África, Índia, América Central, Brasil, China e sul dos EUA. E as mais gulosas são as grávidas. O próprio desejo de comer o barro pode ser a indicação da gravidez.
E nem só homens (que comem em pacotinhos, vendo TV) e mulheres (meio escondidas) gostam de um happy hour de terra. Os animais herbívoros também. E são muito seletivos na sua escolha. Os elefantes e os macacos, por exemplo, se abastecem sempre nos mesmos lugares. Os povos que tomam leite e comem carne geralmente não comem barro, somente aqueles de dieta formada só de plantas, o que confirma um grau maior de pobreza. Interessante é que os pesquisadores encaram a geofagia nos animais como uma prática sensata e desintoxicante. Nos seres humanos é tida como perversa e pessoas educadas costumam esconder essa queda pelo gosto do barro.
Os escravos do Novo Mundo, removidos à força da África, traziam seus costumes de comer argila. Os proprietários de escravos viam nisso a origem de uma síndrome fatal, "cachexia africana" ou "mal d'Estomac" que dava preguiça, anemia e vontade de comer terra. Faziam tudo para impedir esse hábito, e temos relatos de viajantes estrangeiros no Brasil mostrando os escravos com focinheiras afuniladas que cobriam o rosto e que os impediam de satisfazer desejos proibidos.
Os estudos sobre o assunto não são muitos e sempre levam a dúvidas e hipóteses contraditórias. Um dos problemas com o estudo dessa síndrome é o fato de terra ser considerada uma coisa suja e não apropriada para o consumo, mas, na maioria dos lugares onde o hábito é encontrado, a argila é retirada de quase um metro de profundidade e, como depois é seca ao sol ou assada, a contaminação é eliminada.
Um cientista americano em 1996 descobriu uma grande semelhança entre as argilas comestíveis com o remédio Kaopectate, usado contra problemas gástricos e diarreia. Kaopectate é feito de pectina e kaolin, um tipo de argila que produz uma capa protetora nas membranas do trato digestivo e é capaz de absorver toxinas de bactérias e de plantas. O pesquisador acabou chegando à conclusão de que comer terra não é bom nem ruim. Há chances de ser benéfico em alguns casos, perigoso em outros ou puramente psicológico ou cultural, passando de geração a geração, como fumar, mascar tabaco ou cheirar rapé. Então, quem vai confessar que ama um tijolinho fresco?

ninahorta@uol.com.br


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