São Paulo, segunda-feira, 28 de fevereiro de 2005

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Delírios sobre tela

Reuters
Admirador observa trabalho de Dalí na exposição no Museu de Arte da Filadélfia


Megarretrospectiva em museu norte-americano revê a obra do surrealista Salvador Dalí

ROBERTA SMITH
DO ""THE NEW YORK TIMES", NA FILADÉLFIA

A retrospectiva que o Museu de Arte da Filadélfia (um dos mais importantes dos Estados Unidos) está fazendo da obra do pintor megalomaníaco Salvador Dalí, artista favorito de todo adolescente, é uma maratona visual e psicológica. Vinte galerias, várias delas bem grandes, estão lotadas com quase 200 obras de arte, muitas delas pequenas e tão espantosamente detalhadas que exigem ser estudadas de perto. Em alguns momentos, quando se segue de uma galeria a outra, a mostra vai ganhando o clima de labirinto surrealista. O visitante deve se preparar para ser contagiado pelo delírio de Dalí.
A exposição na Filadélfia teve origem no ano passado, no Palazzo Grassi, em Veneza, que celebrou o centenário de nascimento do artista. Ela parte da premissa de que, como a de Picasso, toda a obra de Dalí merece atenção. Implacavelmente, percorre cerca de 65 anos de pinturas e desenhos, esculturas e designs de palco, começando com um pequeno noturno pós-impressionista do porto em Cadaqués, pintado em 1918, quando o artista tinha 14 anos, e concluindo com sua última tela, "A Cauda de Andorinha", feita em 1983.
A exposição inclui um sofá no formato dos lábios de Mae West, dois dos célebres e kitsch telefones-lagostas de Dalí e um monitor que exibe a seqüência onírica que ele criou para o filme "Quando Fala o Coração", de Alfred Hitchcock. Na galeria de vídeo do museu, o filme "Um Cão Andaluz", de Luis Buñuel, é exibido alternadamente com "Destino", um simpático curta de animação de seis minutos de duração no qual Dalí e Walt Disney trabalharam em 1948, mas que só foi concluído em 2003, muito tempo depois de os dois já estarem mortos.

Onipresença
Pode não ser fácil ter uma noção de o que Dalí realizou. É importante dizer que sua obra foi obscurecida por seu temperamento bombástico e seus incansáveis esforços de autopromoção, além de ter sido trivializada por sua influência onipresente -que não é igualada nem mesmo por Picasso. Existem gêneros inteiros de cultura popular e kitsch que parecem quase inimagináveis sem Dalí, incluindo os filmes de terror, as quadrinhos e as capas de livros de ficção científica.
Dalí é um arqueólogo intransigente do "eu". De Chirico pode ter sido o pintor fundador do surrealismo e fonte indispensável de inspiração para Dalí, como o foram Miró, Tanguy e Picasso, para citar apenas alguns. Mas as cenas pungentes criadas por De Chirico de praças desertas são, relativamente falando, tão benévolas quanto histórias da carochinha. As telas de Dalí do final dos anos 1920 e início da década de 1930 estão entre as imagens mais memoráveis, mais sensuais e mais devastadoras do surrealismo.
A combinação serena, mas horripilante, que ele criava de planos puros e repentinas erupções de corpos deformados e carne torturada são célebres por serem imersas em ansiedade e obsessões sexuais: onanismo, escatologia e o medo da impotência. Ela afirma da maneira mais explícita possível o primeiro e maior artigo de fé do surrealismo: que as forças incontroláveis do inconsciente descobertas por Freud eram as que verdadeiramente regem a realidade.
É sempre espantoso ver, como a exposição na Filadélfia volta a demonstrar, até que ponto Dalí absorveu os princípios do surrealismo enquanto ainda vivia na Espanha, lendo Freud de ponta a ponta, devorando catálogos e revistas especializadas de Paris e também estudando em primeira mão a obra do surrealista original, Hieronymus Bosch.
Quando Dalí finalmente chegou a Paris, em 1926, para fazer uma visita breve à sua mãe e irmã, ele era um barril de pólvora em busca de um fósforo que o acendesse. "Pequenas Cinzas", executado em 1927 e 1928, é um léxico fabuloso de referências sexuais, técnicas de pintura e desenho e estilos vanguardistas vigiados por um torso informe, de sexualidade incerta. Pintura que Dalí guardou consigo até sua morte, em 1989, ela justapõe um auto-retrato com a cabeça do poeta Federico Garcia Lorca, seu amigo íntimo.

Ascensão e queda
É idéia corrente no mundo das artes que essa explosão toda de talento não durou muito, e que no final dos anos 1930, quando Dalí ainda era jovem, ele já deixara seus melhores anos para trás. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, muitos de seus colegas e amigos rejeitaram a maneira enérgica como Dalí abraçou a fé católica (ele tinha sido criado como ateu), que resultou nas imagens frágeis e hollywoodianas de crucifixos vistas no fim desta exposição.
E houve as diversas infrações que Dalí cometeu contra sua própria obra: consta que, perto do fim de sua vida, ele teria assinado milhares de folhas de papel em branco, garantindo ao mundo um fluxo constante de falsas litogravuras de Dalí.
Desde sua morte, em 1989, a importância dos trabalhos da primeira fase de Dalí foi reafirmada pela exposição brilhante levada em 1994 da Hayward Gallery, em Londres, para o Metropolitan Museum of Art, em Nova York. Essa exposição, assim como a atual, foram orquestradas por Dawn Ades, veterana estudiosa de Dalí.
Nos anos passados desde a morte de Dalí, também foram lançadas biografias equilibradas e extensamente pesquisadas do artista, de Meredith Etherington-Smith e Ian Gibson, que vasculharam seus escritos autobiográficos e traçaram correspondências entre seus traços de personalidade e sua educação atormentada.
Pode-se dizer que, sob certos aspectos, Dalí já estava fadado desde o começo. Tendo recebido o nome de um irmão mais velho que morrera aos 2 anos de idade, Dalí ficou marcado pela idéia de que era um substituto pálido deste, mas também foi mimado por seus pais, receosos de que também ele pudesse morrer. Ele era patologicamente tímido, fato que aprendeu a disfarçar com acessos de raiva e comportamentos inesperados. Permaneceu por toda a vida um homem sexualmente temeroso e ambivalente. Foi dominado primeiramente por seu pai e depois por Gala Dalí, sua mulher, musa e empresária.

Tradução Clara Allain


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