São Paulo, segunda-feira, 28 de fevereiro de 2005

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MEMÓRIA

Vai-se o fundador, ficam os Demônios da Garoa

RONALDO EVANGELISTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Último remanescente da formação original do tradicionalíssimo conjunto paulistano Demônios da Garoa, morreu em São Paulo na última sexta, dia 25, Toninho, nascido Antônio Gomes Neto. O músico tinha 76 anos de idade e sofria de diabetes e mal de Alzheimer e tinha câncer de próstata. Afastado dos Demônios há pouco mais de um ano devido à sua saúde frágil, Toninho foi internado no dia 17 de janeiro e transferido para a UTI no último dia 10. Vai-se um dos fundadores, fica a instituição criada: no mesmo fim de semana após sua morte, os Demônios decidiram continuar tocando, fazendo shows especiais em homenagem ao fundador, deixando a tristeza dar lugar à alegria da música.
Criado em 1943 (originalmente com o nome Grupo do Luar) no bairro da Mooca por Arnaldo Rosa, Francisco Paulo Gato, Arthur Bernardo, Cláudio Rosa e Toninho, o Demônios da Garoa é hoje o "mais antigo conjunto vocal do Brasil em atividade" -está no "Guinness". O grupo começou na música cantando de graça em festas e clubes e fazendo serenatas sob encomenda, até que se inscreveram em um programa de calouros e acabaram ficando em primeiro lugar, ganhando contrato com as Emissoras Unidas (que contava com as rádios Bandeirantes e Record, entre outras).
Em 1949 participaram da trilha sonora do filme "O Cangaceiro", de Lima Barreto (filme, aliás, premiado no Festival de Cannes naquele ano), e pela mesma época conheceram o compositor Adoniran Barbosa, figura importante na carreira do grupo. Filho de imigrantes italianos, Adoniran compunha sambas que funcionavam como crônicas da vida do paulistano típico, de bairros como Bexiga, Brás e Mooca, daqueles que falam "ôrra, meu". Como os Demônios, que se identificaram e lançaram várias composições suas, como "Saudosa Maloca" (1954), "Samba do Arnesto" (1954) e "Trem das Onze" (1964), todas enormes sucessos nas carreiras do conjunto e de Adoniran.
Por suas características tão tipicamente da cidade, tanto intérpretes como compositor se tornaram ícones de São Paulo, e de São Paulo em uma época, pelo bom humor, pela originalidade e pela interpretação que ao mesmo tempo homenageia e ri do paulistano. Antes de Vinicius fazer sua famosa (e injusta) declaração sobre São Paulo ser o túmulo do samba, os Demônios já eram genuínos representantes de uma vertente paulista do gênero, e mais -carregando toda a personalidade da "terra da garoa". Como nos "erros" e pronúncias tipicamente paulistanos ("nós fumos e não encontremos ninguém").
Criado em uma época em que eram comuns os conjuntos vocais como Anjos do Inferno e Bando da Lua, os Demônios não utilizavam-se de harmonias mirabolantes, mas criaram um estilo único de cantarolar as melodias com divertidas onomatopéias nas introduções, fazendo scats como "cans-cans-cans-cans" e "cascaringundum". Todos também bons instrumentistas, utilizavam-se até do pouco conhecido violão-tenor, com quatro cordas, próximo do banjo e do bandolim, que era tocado por Toninho. Em mais de 60 anos de conjunto, lançaram dezenas de discos, e atualmente continuam tocando com freqüência em lugares como o Bar Brahma, no centro. Para quem nunca assistiu show deles, é como andar na avenida Paulista ou passear no parque Ibirapuera: tem que ser feito e vai valer muito a pena.


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