São Paulo, sábado, 28 de fevereiro de 2009

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Contraponto/cinema

"Milionário" não é péssimo; é filme bom no contexto errado

DA REPORTAGEM LOCAL

Danny Boyle não inventou a roda com "Quem Quer Ser um Milionário?". Não inventou nem sequer um estilo. O filme vencedor de oito Oscars encaixa-se de modo coerente na obra deste imaginativo cineasta britânico, com produções de linguagem e montagem pop.
Seu universo lembra o do cartum, descaradamente inverossímil, em que temas pesados ou escatológicos (dos drogados de "Trainspotting" aos miseráveis de "Milionário") são amenizados ao transitar num universo desde logo apresentado como absurdo. Ou alguém acredita que um menino encharcado de merda possa conseguir o autógrafo de uma celebridade?
Soma-se às suas escolhas o fato de nunca ter se intimidado com orçamentos relativamente baixos. Enveredou por tramas de ficção científica, caso de "Sunshine" (2007) e "Extermínio" (2002), sem ter como investir em efeitos especiais. Compensou com diálogos criativos e soluções engenhosas.
Agora vemos um duplo fenômeno. De um lado, "Milionário" arrebatou a Academia como se o estilo boyliano fosse inédito e comercial. Não é. Tudo o que Boyle mostra está em seus outros filmes. Sendo que, em qualidade, todos transitam do mediano ao bom, e nenhum se saiu espetacular. De outro lado, a premiação gerou enorme resposta negativa. As críticas à produção vão desde considerá-la um retrato "fake" da Índia até julgá-la apelativa por mostrar a "doçura" da miséria.
De fato, o resultado é "fake", mas a verossimilhança não é obrigatória no cinema. Há que se ver o protagonista como um anti-herói de HQ, não um verdadeiro favelado de Mumbai. Sobre o segundo ponto, a discussão já cansou. Sim, "explorar" a pobreza pode ser um modo de fazer marketing com a penúria alheia. Mas não consta que Boyle tenha feito o filme para levar o Nobel da Paz.
Já ouvi falarem que, com os troféus a "Milionário", "Cidade de Deus" enfim ganhou o Oscar. Não procede. Boyle fez um filme ao seu modo, engraçadinho, edificante. Fernando Meirelles quis criar debate social. Um brincou com o que viu; o outro levou demasiado a sério.
Discordo da crítica de Inácio Araujo na Ilustrada de 20/2. "Milionário" não é péssimo. É um filme de Boyle: alternativo, pop, que faz piada com temas duros tornando-os caricaturas. O que o Oscar fez foi tirar a obra do lugar. A saga do garoto simples que vence o show de perguntas e respostas encaixou-se no espírito da era Obama e no novo olhar de países ricos ao pobres. E aí a coisa desanda. "Milionário" não deveria se prestar a isso. Tinha de passar longe de Hollywood.
O Oscar não combina com esse diretor nerd e charmoso como não combinou com Tarantino quando ele o levou por "Pulp Fiction". E por isso decepcionou quem esperava a vitória do cinemão, de épicos babões como o chatérrimo "O Curioso Caso de Benjamin Button". Não se deve julgar "Milionário" muito além do que é: um bom filme, que foi parar no contexto errado. (SC)


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