São Paulo, sábado, 28 de fevereiro de 2009

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Crítica/"Viaje a la Luna - Uma Biografia em Projeção"

Brasileiro faz reinterpretação de labirinto poético de Lorca

Análise de "Viaje a la Luna" vai além de vingança contra curta de Buñuel e Dalí

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

"Buñuel fez uma merdazinha assim de pequenininha que se chama "Um Cão Andaluz" e o cachorro andaluz sou eu." A reação irritada do poeta Federico García Lorca (1898-1936) ao curta-metragem vanguardista realizado pelo cineasta Luís Buñuel em parceria com o pintor Salvador Dalí em 1929 não se resumiu, contudo, à raiva improdutiva.
Nos meses seguintes, Lorca, em viagem a Nova York, escreveu um roteiro intitulado "Viaje a la Luna", mas o manuscrito original ficou perdido até o fim dos anos 80. Em 1994, sua concretização como filme foi realizada pelo cineasta catalão Frederic Amat. Estruturado como uma sucessão de imagens com fortes cargas simbólicas, o roteiro de Lorca cristalizou-se, numa sucessão de interpretações, como uma vingança contra os dois amigos, de quem havia sido companheiro de moradia estudantil na juventude, em Madri.
Sem negar esta possibilidade, o pesquisador brasileiro Reto Melchior abre outras frentes de interpretação em "Viaje a la Luna - Uma Biografia em Projeção" (ed. Perspectiva).
Labirinto de poesia
Em vez de reduzir o texto de Lorca a mera operação de ressentimento, Melchior investiga primordialmente os laços desse projeto cinematográfico com a biografia de Lorca e, sobretudo, com as referências culturais e estéticas da obra poética do autor andaluz. A astúcia do intérprete é avisada por uma observação feita pelo próprio Buñuel na autobiografia "Meu Último Suspiro". "As pessoas imaginam encontrar alusões onde querem, na medida em que se empenham em sentir-se aludidas", defendeu-se daqueles que teimavam em ver em "Um Cão Andaluz" uma sucessão de provocações, algumas profundamente desrespeitosas, ao amigo Lorca. Melchior não deixa de abordar o diálogo possível entre o projeto de Lorca e o curta surrealista de Buñuel-Dalí, mas o trata de modo suplementar.
O núcleo mais produtivo da pesquisa está no trânsito intertextual que o autor estabelece com a produção poética de Lorca, em particular com suas fontes de inspiração, que vão desde a iconografia da lua no imaginário cultural até a figura burlesca de Buster Keaton, passando pelo impacto metropolitano sofrido pelo poeta na viagem a NY. A abundância de referências é complementada por uma cautelosa decifração de signos de origem biográfica, mas sempre evitando reduzir a inspiração ao vivido. Diante desta opção, o leitor leigo pode se deparar com dificuldades num primeiro momento, devido ao arsenal erudito que Melchior reúne em sua estratégia para escapar da armadilha da simplificação, ampliando nossa concepção, por vezes estreita, de motivos.
Se insistir na leitura, contudo, será recompensado com uma riquíssima teia de significados que iluminam não apenas a aventura cinematográfica de García Lorca, constituindo-se também num convite para nos perdermos no labirinto de sua poesia.


VIAJE A LA LUNA - UMA BIOGRAFIA EM PROJEÇÃO

Autor: Reto Melchior
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 36 (193 págs.)
Avaliação: bom



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