São Paulo, terça-feira, 28 de março de 2006

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Amor canônico

Babenco vai filmar o romance "El Pasado", do argentino Alan Pauls, sobre relações que perduram

Axel Alexander/Folha Imagem
O escritor argentino Alan Pauls (à esq.) conversa com o cinea sta Hector Babenco, em Buenos Aires, sobre seu livro "El Pasado", que o diretor transformará em filme


SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES

Há casais que se amam de longe, um tipo de "amor crônico", como define o escritor argentino Alan Pauls. É amor que não termina com a separação nem quando surgem novos amantes na vida de cada ponta da (ex-) dupla.
Assim é a história de Sofía e Rímini, personagens do quarto e mais festejado livro de Pauls, 46, "El Pasado", que o cineasta Hector Babenco decidiu adaptar para o cinema, para surpresa do autor.
"Escrevo literatura quase contra o cinema, como se a imagem não existisse nem nunca fosse existir. O que existe é essa estranha espécie de imagem invisível que as palavras provocam quando alguém as lê. Uma imagem contrária ao cinema, porque é sempre virtual, incerta, onde tudo é possível ao mesmo tempo", afirma Pauls.
Nessa obra "espessamente literária", Babenco enxergou "um discurso maiúsculo sobre o amor moderno, o amor verdadeiro". O livro começa quando Sofía e Rímini se separam, depois de viverem 12 anos juntos.
"É um romance sobre o que ocorre com o amor, depois que ele aparentemente terminou", diz Pauls. A atualidade do tema coincide com a perspectiva que hoje, aos 60 anos, Babenco tem de sua carreira como cineasta.

Fértil
Na visão do diretor "quem [como ele] pertence à última geração que, em sua infância e juventude, no seu momento mais fértil de crescimento, viveu o melhor que a história do cinema produziu, tem um legado de, ao ver que está terminando esse ciclo de vida, trazer algo que seja o sumo do que aprendeu, num filme novo, moderno, que fale de relações, de casais, do que é o amor hoje -não mais o sexo livre, o casamento, a pílula, a traição. Mas o que é o amor, em sua essência".
Babenco e Pauls trocaram comentários sobre "El Pasado" (filme e livro) na última segunda, em Buenos Aires, em encontro que a Folha acompanhou.
O cineasta chegou ao café La Biela, no bairro da Recoleta, depois de fazer testes com atrizes para o papel de Sofía. Rímini será interpretado pelo mexicano Gael García Bernal (leia texto ao lado).
No mês que vem, Babenco se muda de São Paulo para Buenos Aires. Em junho, ele ensaia o longa-metragem, para filmá-lo em julho. Haverá cenas filmadas também em São Paulo, onde ocorre parte da ação do romance, quando Rímini acompanha Carmen, sua terceira mulher, a um congresso de tradutores e visita a Bienal do Livro, no Anhembi.
O retorno de Babenco ao país e à língua em que nasceu não é necessariamente uma volta sua ao próprio passado, como a que fez com "Coração Iluminado" (1998), filmado no balneário de Mar del Plata, sua cidade-natal.

Amor sem presença
"Achei que era o momento de voltar a esse universo do sentimento, diferente do retorno de "Coração Iluminado", que é uma volta ao universo da memória, àquilo que eu havia deixado reprimidamente escondido", diz. "Aqui, estou voltando ao amor."
Não a qualquer amor. "Todos os que nos dispusemos a viver a vida de forma mais plena talvez saibamos o que significa levar uma Sofía dentro de nós", afirma o cineasta. "O amor verdadeiro é o que nunca morre dentro de você, apesar de você estar feliz com outra pessoa e construindo algo novo, seja família, relação, descobertas, qualquer coisa. Isso não impede que haja outro amor vivendo em você, um amor que não precisa ser alimentado de presença cotidiana nem ter uma continuidade física."
Da persistência dessa espécie de "amor obsessivo" decorre, para Pauls, o fato de que "nesse sentido todo mundo é polígamo -não vive só com a pessoa com quem está casado mas também com todas as pessoas que amou, as que deixou e as por quem foi deixado". Essa "existência fantasmagórica" dos amantes é, para o autor, a "alma do livro", que Babenco procura preservar no filme.
"Quando telefonei para o Alan, ele disse que nunca havia pensado que alguém pudesse se interessar em filmar seu livro, o que é um sinal muito inocente e limpo da parte do escritor. Hoje em dia, a mecânica do mercado editorial está cada vez mais ligada à transformação da palavra em imagem, passando o livro para filme. Eu vi que tinha uma responsabilidade muito grande e tentei ser o mais fiel possível, não trair a alma do livro, seu encanto, seu poder secreto, o que significa não banalizá-lo", descreve Babenco.

"Sick art"
Na adaptação, no entanto, uma importante linha narrativa do livro foi extirpada. Paralelamente à história de Sofía e Rímini, Pauls descreve vida e obra do artista plástico fictício Riltse, expoente da "sick art" (arte doente), vertente para a qual "arte e desequilíbrio orgânico são consubstanciais".
Assim como o casal de protagonistas, Riltse vive um amor obsessivo e inextinguível com seu discípulo Pierre-Gilles.
Amputar essa parte da história do filme doeu em ambos os criadores. "Levei um ano para aceitar a idéia de que tinha de renunciar a esse cordão narrativo. Fui tirando aos poucos, deixando restos, mas aí a história não ficava de pé. Decidi finalmente arrancá-la de todo, como se arranca uma sonda de uma uretra", diz Babenco.
Pauls também descreve o corte. "Eu sabia que, para levar ao cinema um romance como "El Pasado", seria necessário fazer uma cirurgia grande. Fiz um escrupuloso trabalho de resignação."

Leia mais trechos da conversa de Alan Pauls com Hector Babenco


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