São Paulo, segunda-feira, 28 de março de 2011

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Na coxia com autran

Acervo pessoal de Paulo Autran reunido no Instituto Moreira Salles revela os bastidores do teatro brasileiro no século 20

MARCELO BORTOLOTI
DO RIO

Em 1974, o jornal "Correio do Povo", de Porto Alegre, recebeu uma carta de leitora que se queixava do excesso de palavrões na peça "Dr. Knock", de Jules Romains, dirigida e adaptada por Paulo Autran (1922-2007).
Publicada no jornal, a carta irritou Autran. Em resposta manuscrita, cujo original guardou até o fim da vida, ele começa tratando-a de "pudibundíssima senhora".
E prossegue: "Fiquei muito preocupado com seus problemas. Em primeiro lugar seus problemas auditivos. A senhora ouviu palavrões no teatro durante um espetáculo que, por mero acaso, não os tem. Creio que houve uma pequena confusão. É possível que a senhora e suas filhas mocinhas tenham ouvido palavrões ao sair de casa, durante o trajeto para o teatro, como todos nós ouvimos diariamente na rua (...)".
O manuscrito integra o acervo pessoal do ator arquivado no Instituto Moreira Salles, no Rio.
Os documentos, guardados em 70 caixas e ainda não organizados completamente, revelam particularidades da personalidade de Autran, como sua dificuldade em lidar com as críticas.
Entre os papéis, há mais de uma centena de fotos, além de cartas, livros e anotações.
Uma das preciosidades do acervo é um texto inédito de ficção escrito pelo ator, em que recria um mundo sem teatro no ano de 2091.
Autran era um homem meticuloso. Ao longo da carreira, organizou uma pasta para cada peça em que atuou ou dirigiu, com todas as críticas, fotos e informações, como o número de pessoas que foram ao espetáculo.
"Ele sempre soube que era parte da história do teatro no país", diz a atriz Karin Rodrigues, com quem Autran foi casado, numa relação bastante particular, que começou na década de 1970.
Nome fundamental da dramaturgia brasileira, com mais de 90 peças e atuações memoráveis na TV em novelas como "Guerra dos Sexos" (1983), de Silvio de Abreu, e no cinema, como "Terra em Transe" (1967), de Glauber Rocha, o ator teve um início de carreira incomum.
Carioca criado em São Paulo, havia se formado em direito e pretendia seguir na profissão de advogado. Foi o incentivo da amiga e atriz Tônia Carreiro que o fez optar pelo palco. Em 1949, ele estrelou ao lado dela a peça "Um Deus Dormiu Lá em Casa", seu primeiro trabalho.
Mesmo após a consagração, ele fazia questão de rebater as críticas que recebia.
"Geralmente as críticas eram burras. Quando vinham de um Sábato Magaldi, ele aceitava", diz Rodrigues.
Outra revelação do acervo são os altos e baixos da amizade entre Autran e Tônia. Comenta-se que, embora fossem grandes parceiros, eles competiam pelo sucesso.
Em 1992, a atriz escreveu um telegrama duro ao amigo.
"Compreendo perfeitamente que não possamos mais trabalhar juntos para não por em risco nossa amizade tão bonita. Não compreendo, porém, que depois de tanto tempo tão ligados, você não tenha podido perceber em mim a artista que o país todo reconhece."
A crise foi remediada quatro dias depois, com um novo telegrama: "Paulo, assisti ao tal programa. Você lavou minha alma e tapou a boca de muita gente. Também não precisava tanto, contei meu nome nove vezes, cruzes".
Tônia Carreiro não estava disponível para entrevista. Seu filho, Cecil Thiré, diz que o episódio foi motivado provavelmente por Autran ter declarado que não queria mais trabalhar com sua mãe. Em seguida, numa entrevista pela TV, ele abrandou a fala.


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