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LIVRO/LANÇAMENTO
Obra do moçambicano Mia Couto retrata conflitos africanos entre cultura e política
Um país partido
ROGÉRIO EDUARDO ALVES
DA REDAÇÃO
Em "Um Rio Chamado Tempo,
uma Casa Chamada Terra", o
moçambicano Mia Couto, 47,
tenta desfazer os limites entre o
continente colonizado e a ilha tradicional. Nesse livro construído
sobre linhas divisórias, mais que o
relato do choque cultural resultante do encontro das margens,
surge um país partido.
"O conflito não é tanto entre
tradição e modernidade, mas entre as dinâmicas de resistência popular e as vantagens políticas e
econômicas que uma certa elite
retira de um processo de alienação da cultura e das riquezas dos
seus países", diz o autor.
O retrato é o de um Moçambique livre e presidencialista
-após 16 anos de guerra civil entre a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo, apoiada pela África do
Sul), terminada em 1992-, mas
ameaçado e partido.
"Moçambique vive o drama da
maior parte dos países africanos:
o desencontro entre raízes culturais profundas e um modelo de
administração copiado de experiências exógenas", analisa, lembrando a dominação portuguesa
sobre o país, que durou até 1975 e
deixou resquícios. "Trata-se de
uma nação composta de várias
nações, um país que vive simultaneamente em diferentes séculos."
No enredo do romance, que
emerge dessas águas limítrofes,
até a morte é incerta. Meio vivo,
meio defunto, o avô, enraizado
em suas origens bantus, é velado
na ilha por sua família do continente, desmembrada e descaracterizada pelos interesses modernos de ares europeus. Enquanto
se discutem as possibilidades do
enterro, ao narrador Mariano vão
sendo descerradas profundezas
das verdades familiares.
"Ao encontrar a sua ilha natal,
ele [Mariano] se apercebe que necessita cruzar um outro rio, esse
que separa as duas margens da
sua alma interior", diz Mia Couto.
Para contar essa quase fábula, o
escritor utiliza uma linguagem
que também está "entre". Ao
mesmo tempo em que a prosa
tende para a margem da poesia,
os termos da língua bantu invadem os parágrafos. Poética na origem, a escrita de Mia Couto alimenta-se de autores "que foram
capazes de produzir línguas próprias", como os brasileiros João
Guimarães Rosa e Manoel de Barros e o angolano Luandino Vieira.
"Eu chego à prosa por via da
poesia. E, mesmo escrevendo romances, não abandonei a lógica e
a liberdade poéticas. Sou um poeta que conta histórias."
E, nessa sua quinta obra -escreveu, entre outras, "Terra Sonâmbula" e "Vozes Anoitecidas"-, a história de Couto faz
das palavras personagem. "[Mariano" se apercebe que apenas a
escrita pode servir de barco para
colocar em ligação pessoas, gerações e as culturas urbanas e rurais.
Mas é necessário que essa escrita
se deixe contaminar pela oralidade, uma escrita que se deite na terra, se suje de poeira e namore com
as vozes da ruralidade."
Todas essas fronteiras construídas e destruídas pelo moçambicano filho de portugueses possuem
raízes em sua vida. "Nasci numa
pequena cidade [Beira, em Moçambique] e fui ganhando por osmose valores de culturas diversas.
O acaso me colocou como um ser
de fronteira que aprendeu a ganhar identidade nessa fabricação
interior de mestiçagens."
Se os limites são vividos, o trabalho do escritor como biólogo
na ilha de Inhaca, em frente à cidade de Maputo, levou-lhe às páginas desse novo livro.
"Todas as semanas eu atravessava a grande baía, numa viagem
num pequeno e frágil barco.
Aquele barco cruzava mais que
um rio. Atravessava uma linha
que divide o mundo da urbanidade e da ruralidade." E mais pode
se esperar de suas outras atividades como professor universitário
e jornalista. "Sou escritor de intervalos, que pretende encontrar na
vida produtiva um motivo de permanente inspiração."
UM RIO CHAMADO TEMPO, UMA
CASA CHAMADA TERRA. De: Mia Couto.
Editora: Companhia das Letras. Quanto:
R$ 35 (264 págs.).
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