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São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

Obra do moçambicano Mia Couto retrata conflitos africanos entre cultura e política

Um país partido

ROGÉRIO EDUARDO ALVES
DA REDAÇÃO

Em "Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra", o moçambicano Mia Couto, 47, tenta desfazer os limites entre o continente colonizado e a ilha tradicional. Nesse livro construído sobre linhas divisórias, mais que o relato do choque cultural resultante do encontro das margens, surge um país partido.
"O conflito não é tanto entre tradição e modernidade, mas entre as dinâmicas de resistência popular e as vantagens políticas e econômicas que uma certa elite retira de um processo de alienação da cultura e das riquezas dos seus países", diz o autor.
O retrato é o de um Moçambique livre e presidencialista -após 16 anos de guerra civil entre a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo, apoiada pela África do Sul), terminada em 1992-, mas ameaçado e partido.
"Moçambique vive o drama da maior parte dos países africanos: o desencontro entre raízes culturais profundas e um modelo de administração copiado de experiências exógenas", analisa, lembrando a dominação portuguesa sobre o país, que durou até 1975 e deixou resquícios. "Trata-se de uma nação composta de várias nações, um país que vive simultaneamente em diferentes séculos."
No enredo do romance, que emerge dessas águas limítrofes, até a morte é incerta. Meio vivo, meio defunto, o avô, enraizado em suas origens bantus, é velado na ilha por sua família do continente, desmembrada e descaracterizada pelos interesses modernos de ares europeus. Enquanto se discutem as possibilidades do enterro, ao narrador Mariano vão sendo descerradas profundezas das verdades familiares.
"Ao encontrar a sua ilha natal, ele [Mariano] se apercebe que necessita cruzar um outro rio, esse que separa as duas margens da sua alma interior", diz Mia Couto.
Para contar essa quase fábula, o escritor utiliza uma linguagem que também está "entre". Ao mesmo tempo em que a prosa tende para a margem da poesia, os termos da língua bantu invadem os parágrafos. Poética na origem, a escrita de Mia Couto alimenta-se de autores "que foram capazes de produzir línguas próprias", como os brasileiros João Guimarães Rosa e Manoel de Barros e o angolano Luandino Vieira.
"Eu chego à prosa por via da poesia. E, mesmo escrevendo romances, não abandonei a lógica e a liberdade poéticas. Sou um poeta que conta histórias."
E, nessa sua quinta obra -escreveu, entre outras, "Terra Sonâmbula" e "Vozes Anoitecidas"-, a história de Couto faz das palavras personagem. "[Mariano" se apercebe que apenas a escrita pode servir de barco para colocar em ligação pessoas, gerações e as culturas urbanas e rurais. Mas é necessário que essa escrita se deixe contaminar pela oralidade, uma escrita que se deite na terra, se suje de poeira e namore com as vozes da ruralidade."
Todas essas fronteiras construídas e destruídas pelo moçambicano filho de portugueses possuem raízes em sua vida. "Nasci numa pequena cidade [Beira, em Moçambique] e fui ganhando por osmose valores de culturas diversas. O acaso me colocou como um ser de fronteira que aprendeu a ganhar identidade nessa fabricação interior de mestiçagens."
Se os limites são vividos, o trabalho do escritor como biólogo na ilha de Inhaca, em frente à cidade de Maputo, levou-lhe às páginas desse novo livro.
"Todas as semanas eu atravessava a grande baía, numa viagem num pequeno e frágil barco. Aquele barco cruzava mais que um rio. Atravessava uma linha que divide o mundo da urbanidade e da ruralidade." E mais pode se esperar de suas outras atividades como professor universitário e jornalista. "Sou escritor de intervalos, que pretende encontrar na vida produtiva um motivo de permanente inspiração."


UM RIO CHAMADO TEMPO, UMA CASA CHAMADA TERRA. De: Mia Couto. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 35 (264 págs.).


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