São Paulo, quarta-feira, 28 de abril de 2004

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ATRAÇÃO PELA REPULSA

Em Londres, mostras na Saatchi Gallery e na Tate Modern apresentam artistas que buscam o mal-estar

Exposições questionam o sentido da arte

FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE LONDRES

A enorme estrutura de aquário da obra "The Pursuit of Oblivion", tema recorrente na carreira de Damien Hirst, chama a atenção na Tate Modern, em Londres. Dentro do quadro tridimensional, uma vaca cortada ao meio, pendurada em ganchos de frigoríficos, está rodeada por peixes que nadam e se alimentam do corpo do animal morto. No fundo, um crânio e uma concha repousam sobre um banco perfurado por facas. Garrafas de champanhe, um capacete, uma frigideira e um guarda-chuva compõem o resto da peça, que lembra obras de Dalí.
Apesar do riso de alguns visitantes, "Pursuit" é uma das peças mais chocantes da mostra na Tate. "Senti-me um pouco mal", diz a professora Rica Patiantosch, 29. "Mas acho que esse é o papel da arte. Foi para isso que vim."
Algumas das obras na Tate estão confundindo os visitantes. Tanto que a função de um empregado é alertar as pessoas de que o lugar em que elas acabaram de colocar a bolsa é, na verdade, uma obra de arte. Trata-se de "Spam", de Sarah Lucas, um bloco de poliestireno pintado de rosa que pouco chama a atenção. "Entendo que possa causar confusão, mas o tema de "Spam" é recorrente no trabalho de Sarah. A artista costuma pegar elementos do dia-a-dia, nesse caso uma pasta de carne que era comercializada nos períodos de guerra, e a expõe em um contexto diferente. É algo minimalista e cheio de humor britânico", diz a curadora.
A impressão, para alguns, é realmente essa: que tudo não passa de uma piada. "Não achei nada chocante", diz o gerente de marketing Frans Waals, 59. "Muitas das obras parecem ter apenas um título irônico, um humor que funciona apenas no começo."
Marcus Cope, 23, que além de trabalhar na galeria é estudante de artes, já viu muita gente reclamar. "Tem visitante que não tem vergonha de dizer bem alto que as obras são uma merda, mas percebo que a reação da maioria das pessoas é positiva", diz. "Ainda assim acho que a mostra tem um certo ar de circo, de "freak show"."
"Freak show" é um dos adjetivos que os jornalistas de tablóide costumam usar ao se referir ao acervo de Charles Saatchi. E a culpa é de obras como os manequins dos irmãos Chapman que representam crianças com órgãos sexuais nos lugares em que deveriam estar nariz e boca.
Desde 2003, quando o colecionador abriu a sua própria galeria em um dos pontos turísticos mais movimentados de Londres, ao lado da roda gigante London Eye, mais de 500 mil pessoas já foram conferir de perto as obras.
Com a exibição "New Blood", a galeria espera aumentar o fluxo de visitantes. "São obras muito interessantes, várias estão sendo exibidas pela primeira vez, e isso está trazendo mais pessoas", revela o porta-voz da Saatchi.
Mas será que as novas aquisições, como uma gigante máquina de tear ou uma montanha formada com ratos mortos merecem atenção? Segundo a crítica britânica, não. Alguns jornais dizem que a técnica usada por Saatchi de comprar em quantidade quando o preço está lá embaixo e de adquirir peças de artistas novatos parece não funcionar.
"Novidade não tem o menor valor artístico, mas acabou se transformando na razão por trás da exposição (...). Será que o colecionador gosta do que ele está comprando?", escreveu o jornal "The Observer". Já "The Guardian" ataca: "Isso é o que acontece quando a arte contemporânea vira um fenômeno turístico. Para quem foi feita a exibição? Os artistas, a audiência ou para suprir as fantasias do colecionador?"
O público que anda lotando a galeria Saatchi também não parece interessado. "Achei tudo horrível. Parece que as peças foram escolhidas apenas para chocar", diz a produtora Emma Allen, 36.
Mas é essa a função da arte, chocar? "Acredito que sim. Ao longo da história, esse tem sido um de seus papéis mais importantes", diz Rob Bowman, organizador da "Beck's Future", competição e mostra que reúne artistas novos, em cartaz no ICA (Instituto de Arte Contemporânea). "Isso estimula um diálogo maior entre a obra e o público. Apesar de não ser algo intrínseco à arte, acho que é um elemento que deve ser levado em conta pelo artista."
É em exposições como a "Beck's Future" que Saatchi costuma buscar novos artistas. Uma das peças mais curiosas de "New Blood" é uma múmia que geme, criada por Francis Upritchard, vencedor do prêmio do ICA, em 2003. Neste ano, o brasileiro Tonico Lemos Auad está participando da "Beck's Future". Suas esculturas feitas com pêlos soltos de carpete e desenhos em cachos de bananas estão causando reação na mídia parecida com a que os artistas da Brit-Art costumam provocar. "Os jornais adoram uma polêmica, mas o público tem sido cativado pela inventividade das peças de Tonico. Acho que elas podem muito bem vir a fazer parte da coleção Saatchi", acredita Bowman.
Talvez a saída de "In-A-Gadda" resuma bem a história. Ao deixar a galeria, o visitante é obrigado a passar pela lojinha do museu. Nas prateleiras, livros, pôsteres etc. estampam o título da exibição. Ao lado dos caixas, perto dos cartões-postais, um livro traz como título a pergunta: "Mas será isso arte?".
(JULIANO ZAPPIA)

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