São Paulo, quarta-feira, 28 de abril de 2004

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MARCELO COELHO

Reservas devastadas

Um presidiário manda tatuar no braço o nome da namorada. Ou uma rosa; ou o rosto de Jesus; ou a clássica frase: "Amor, só de mãe". Até aí, tudo normal. Que o preso tenha uma tatuagem com as figuras de Huguinho, Zezinho e Luizinho já é um pouco mais estranho. Mas que se decida pela imagem de um bebê de proveta -o feto encolhido dentro de um tubo de ensaio, prolongando-se numa diagonal do braço até o ombro, quase na altura do pescoço-, eis uma coisa bem mais difícil de explicar.
O detalhe é intrigante, mas certamente não está entre os maiores absurdos registrados em "O Prisioneiro da Grade de Ferro". O documentário de Paulo Sacramento, em cartaz no Espaço Unibanco, retrata o cotidiano do Carandiru poucos meses antes de sua desativação. Várias cenas foram filmadas pelos próprios presos, alternando-se entre o banal e o monstruoso.
Hesito antes de dar exemplos de uma coisa e outra. O banal desaparece da memória. Tento descrever uma cena -uma disputa de pênaltis na final do campeonato interno de futebol, um detento cantando rap, a visita semanal dos familiares-, penso melhor, e nada me parece tão banal assim.
Da cela, um preso filma os fogos de artifício que comemoram o Réveillon na avenida Paulista. O metrô passa ali perto com seus vagões iluminados e vazios. A imagem, em si desinteressante e rasa, impregna-se de miséria humana.
Mas o filme não aposta muito na compaixão do espectador. Ao contrário de "Estação Carandiru" -tanto o livro de Drauzio Varella quanto o filme de Hector Babenco que se baseia nele-, "O Prisioneiro da Grade de Ferro" não apresenta personagens pitorescos, histórias engraçadas ou emocionantes. Nada sabemos dos detentos, a não ser sua condição concreta.
Mesmo as cenas mais simples -uns presos distribuindo marmitas a seus companheiros, alguém fazendo exercício ou coando café- trazem componentes de absurdo e violência. Não desperta muita simpatia, a mim pelo menos, a cena de presidiários treinando boxe com grande empenho; mas o filme também mostra -como se fosse a imagem de uma pena interminável- alguém se esfalfando numa esteira ergométrica em petição de miséria. O carrinho de mão que distribui as quentinhas, conduzido aos trancos, dá suficiente idéia da brutalidade do ambiente.
E, claro, não é nada diante das coisas realmente hediondas que iremos ver. Há os ratos que tomam conta do pátio, à noite, como se fossem os donos do lugar. Há os closes de doentes na fila do atendimento: pernas deformadas, tumores de pesadelo. Há as fotos de presos trucidados pelos companheiros. Há, por fim, as celas do último círculo do inferno: a câmera é introduzida pela abertura da porta de ferro, e lá dentro distinguimos um homem sozinho e nu, como um bicho. Ou dezenas deles, que se comprimem no escuro como pilhas de cadáveres. Ficam ali dia e noite, mal podendo se mexer.
Ao mesmo tempo, há o grande número de presos que levam uma vida "normal" dentro da prisão. O comércio de jeans e televisores, assim como o de drogas, é mostrado sem constrangimento pelos próprios detentos; um alambique clandestino, tanto quanto o "trottoir" dos prostitutos, aparece em franco funcionamento.
O presídio inteiro termina surgindo como se fosse a paródia sinistra do prédio de classe média retratado por Eduardo Coutinho em "Edifício Master". Cada detento, em sua cela, trata dos próprios interesses e, com certo orgulho, pode mostrar suas realizações e habilidades: o preso que desenha retratos dos outros, o que faz bricolagens ou próteses dentárias e assim vai ganhando a vida.
Feito aos fragmentos, com cenas filmadas pelos mais variados tipos de indivíduo, "O Prisioneiro da Grade de Ferro" é ele próprio uma espécie de bricolagem, em que detalhes aparentemente sem sentido acabam contribuindo para compor o resultado final. É de um horror sem limite, inapelável.
Creio que o documentário impressiona ainda mais depois que acaba. Incomodou-me a princípio a aparente desconexão das cenas. Percebi depois que o motivo de meu mal-estar era outro. O que realmente se apresenta como dissonante e desconexo não são as imagens do filme, mas sim as falas que registra. É o discurso dos próprios detentos que não faz sentido, ou melhor, que soa inautêntico.
O pronunciamento sinuoso do pastor evangélico, a oração conformada do detento que diz "estar pagando sua dívida com a sociedade", as frases engessadas do rapper, as inflexões insinceras de um preso que protesta contra a corrupção política ou contra o consumismo da sociedade, tudo parece fora de lugar. É como se os presos tivessem sido privados não só da liberdade de movimento, mas da capacidade de dizer o que pensam. São raros os que parecem falar com a própria voz: os gays e os traficantes, isto é, os "ilegais" dentro do sistema, são curiosamente aqueles que não perderam esse poder.
Uma incrível inventividade está em curso em outras situações: o filme mostra a técnica empregada para produzir pinga na cadeia ou para montar uma máquina de tatuagem com caneta esferográfica e motor de toca-fitas.
Falamos das árvores destruídas na Amazônia, e não das reservas imensas de criatividade e inteligência que se devastam em inumeráveis pessoas.
Volto ao bebê de proveta. Talvez a tatuagem signifique algo perto disso: a esperança de que um novo homem pudesse ainda nascer de um terreno arrasado totalmente.


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