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CARLOS HEITOR CONY
Uma luta de titãs
Cheguei a uma conclusão
sobre a vida: tinha de vencê-la, antes que ela me vencesse. Era
pobre, feio, não ia além da cartilha, da regra de três e de alguns
conhecimentos suplementares.
Graças a um desses conhecimentos suplementares, cheguei à
certeza de que só conseguiria vencer à custa de uma mulher. Para
subir ao território sagrado dos
vencedores, precisava de uma
mulher que eu guiaria nas sendas
do sucesso, para ela e para mim.
As mulheres que me rodeavam
eram pífias como eu. Mãe e duas
irmãs, fora de cogitação. A situação só não era desesperadora porque havia o irmão, na carreira
das armas. No último ano da Escola Militar conheceu aquela que
seria a minha cunhada e salvação
da minha lavoura. Chamava-se
Gilberta.
As coisas não foram fáceis. O irmão levaria um século para consumar o casamento. Gilberta tivera um passado e, quando o irmão
soube desse passado, quase que o
casamento caiu das cabeceiras.
Foi preciso audácia minha para
colocar tudo em seu devido lugar.
Procurei o responsável pelo passado de Gilberta, ameacei levar o
caso à polícia -Gilberta era menor-, fiz uma complicação tamanha que o irmão abençoou-me e Gilberta abençoou-me também, tomando-me, desde então,
como seu guru e salvador.
Sou hoje presidente de cinco
bancos, de outras tantas companhias e sociedades anônimas, tenho conta secreta num banco da
Suíça, cavalos de corrida em São
Paulo e um cafezal no Paraná.
Tudo começou na igreja, durante a cerimônia nupcial. Afastado dos colegas do irmão, havia
um homem fardado como um general e era general mesmo. Seus
olhos brilhavam em direção a Gilberta. Sim, era um belo espécime
de fêmea a minha cunhada.
Chamei o pai e forcei-o a convidar o general. O qual relutou um
pouco, agastado por não ter recebido o convite para comparecer à
festa íntima, mas eu cheguei a
tempo para convencer o general.
Disse que Gilberta fazia questão
de conhecer pessoal e intimamente o general. O homem rodou nos
calcanhares, em todos os sentidos;
deu meia volta no corpo e nas intenções e foi lá para casa, onde
meu pai armara bufê com peru,
garçons e champanha nacional.
Volta e meia o general me fitava, cobrando-me a apresentação.
Tirei Gilberta de uma roda de
amigos e levei-a a um canto.
- Olha, preciso de um favor seu.
Tá vendo aquele homem ali?
- O marechal?
- Não. Não é marechal ainda. É
general. Quero que você diga para ele aparecer em sua casa.
- Mas...
- Não tem mas. Convide-o para
jantar numa hora em que seu
marido não esteja em casa. Do
contrário...
- É uma chantagem?
- Não. É um futuro.
Oito meses mais tarde, o general
suicidava-se, deixando um bilhete atroz para Gilberta, acusando-a de o ter traído com um mar-e-guerra que se chamava Ápio. O
tal mar-e-guerra deu um desfalque na Armada Nacional para se
encontrar com Gilberta em Paris
-pois nesse meio tempo eu consegui que Gilberta fosse apresentada a um primeiro secretário de
embaixada que arranjou para
meu irmão uma comissão em Paris. O mar-e-guerra foi degradado, mas logo surgiu um ministro
de Estado para substituí-lo, e meu
irmão conseguiu, aos 29 anos,
chegar a tenente-coronel. Uma
carreira fulminante, que se tornou mais fulminante quando foi
nomeado diretor da principal ferrovia do país -e Gilberta foi
apresentada por mim a um banqueiro que me financiou a campanha para deputado federal.
Sim, houve vacas magras. As
concorrentes surgiam de todos os
lados. Lembro-me de uma Teresa,
mulher de um major que, não
tendo irmão que lhe explorasse a
mulher, encarregava-se ele próprio de explorá-la. Foi um páreo
duro, pois surgiu importante missão: representar o país na coroação da rainha da Inglaterra. Teresa indicou o major, mas Gilberta lutou com unhas e dentes pelo
meu irmão. Ganhou Gilberta por
cabeça, numa luta de titãs, de-
senrolada num apartamento da
avenida Atlântica e sob a presidência de um velho caquético, ex-ministro de Estado.
Na Inglaterra, Gilberta não ficou inativa. Ao retornar, trouxe
comendas e um filho, cujo pai
pertencia aos mais nobres veios
da Escócia. Em matéria de veios
da Escócia, só o uísque me era íntimo, mas tratei de levantar a árvore genealógica daquele rebento
espúrio. Voltei da Escócia com
quase meio milhão de libras e um
brasão para gravar em minhas
cuecas. Fizeram-me barão de não
sei qual lugar, e eu vendi o baronato lá mesmo, na Bolsa de Londres, com a libra bem cotada.
Quando o irmão suspeitou de
Gilberta, eu me sacrifiquei: disse
que era o pai da criança. O irmão
chorou duas noites e dois dias,
mas logo se consolou sabendo que
a sua desgraça ficava em família.
Estou rico, honrado e ilustre.
Sou verbete na enciclopédia do
Antonio Houaiss. Tenho tudo,
menos uma coisa: mulher. Pois a
única que me satisfaria, a única
que conseguiria amar, a única
que me fala ao pau e ao sentimento, é Gilberta. Mas alguma
coisa me trava. Um perdoável escrúpulo de não querer trair o irmão. Nem as honras nem o dinheiro conseguiram me despojar
dos preconceitos da classe. Sou
um pequeno-burguês. E já fui citado como reserva moral da nação.
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