São Paulo, sexta-feira, 28 de abril de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Uma luta de titãs

Cheguei a uma conclusão sobre a vida: tinha de vencê-la, antes que ela me vencesse. Era pobre, feio, não ia além da cartilha, da regra de três e de alguns conhecimentos suplementares.
Graças a um desses conhecimentos suplementares, cheguei à certeza de que só conseguiria vencer à custa de uma mulher. Para subir ao território sagrado dos vencedores, precisava de uma mulher que eu guiaria nas sendas do sucesso, para ela e para mim.
As mulheres que me rodeavam eram pífias como eu. Mãe e duas irmãs, fora de cogitação. A situação só não era desesperadora porque havia o irmão, na carreira das armas. No último ano da Escola Militar conheceu aquela que seria a minha cunhada e salvação da minha lavoura. Chamava-se Gilberta.
As coisas não foram fáceis. O irmão levaria um século para consumar o casamento. Gilberta tivera um passado e, quando o irmão soube desse passado, quase que o casamento caiu das cabeceiras. Foi preciso audácia minha para colocar tudo em seu devido lugar. Procurei o responsável pelo passado de Gilberta, ameacei levar o caso à polícia -Gilberta era menor-, fiz uma complicação tamanha que o irmão abençoou-me e Gilberta abençoou-me também, tomando-me, desde então, como seu guru e salvador.
Sou hoje presidente de cinco bancos, de outras tantas companhias e sociedades anônimas, tenho conta secreta num banco da Suíça, cavalos de corrida em São Paulo e um cafezal no Paraná.
Tudo começou na igreja, durante a cerimônia nupcial. Afastado dos colegas do irmão, havia um homem fardado como um general e era general mesmo. Seus olhos brilhavam em direção a Gilberta. Sim, era um belo espécime de fêmea a minha cunhada.
Chamei o pai e forcei-o a convidar o general. O qual relutou um pouco, agastado por não ter recebido o convite para comparecer à festa íntima, mas eu cheguei a tempo para convencer o general. Disse que Gilberta fazia questão de conhecer pessoal e intimamente o general. O homem rodou nos calcanhares, em todos os sentidos; deu meia volta no corpo e nas intenções e foi lá para casa, onde meu pai armara bufê com peru, garçons e champanha nacional.
Volta e meia o general me fitava, cobrando-me a apresentação. Tirei Gilberta de uma roda de amigos e levei-a a um canto.
- Olha, preciso de um favor seu. Tá vendo aquele homem ali?
- O marechal?
- Não. Não é marechal ainda. É general. Quero que você diga para ele aparecer em sua casa.
- Mas...
- Não tem mas. Convide-o para jantar numa hora em que seu marido não esteja em casa. Do contrário...
- É uma chantagem?
- Não. É um futuro.
Oito meses mais tarde, o general suicidava-se, deixando um bilhete atroz para Gilberta, acusando-a de o ter traído com um mar-e-guerra que se chamava Ápio. O tal mar-e-guerra deu um desfalque na Armada Nacional para se encontrar com Gilberta em Paris -pois nesse meio tempo eu consegui que Gilberta fosse apresentada a um primeiro secretário de embaixada que arranjou para meu irmão uma comissão em Paris. O mar-e-guerra foi degradado, mas logo surgiu um ministro de Estado para substituí-lo, e meu irmão conseguiu, aos 29 anos, chegar a tenente-coronel. Uma carreira fulminante, que se tornou mais fulminante quando foi nomeado diretor da principal ferrovia do país -e Gilberta foi apresentada por mim a um banqueiro que me financiou a campanha para deputado federal.
Sim, houve vacas magras. As concorrentes surgiam de todos os lados. Lembro-me de uma Teresa, mulher de um major que, não tendo irmão que lhe explorasse a mulher, encarregava-se ele próprio de explorá-la. Foi um páreo duro, pois surgiu importante missão: representar o país na coroação da rainha da Inglaterra. Teresa indicou o major, mas Gilberta lutou com unhas e dentes pelo meu irmão. Ganhou Gilberta por cabeça, numa luta de titãs, de- senrolada num apartamento da avenida Atlântica e sob a presidência de um velho caquético, ex-ministro de Estado.
Na Inglaterra, Gilberta não ficou inativa. Ao retornar, trouxe comendas e um filho, cujo pai pertencia aos mais nobres veios da Escócia. Em matéria de veios da Escócia, só o uísque me era íntimo, mas tratei de levantar a árvore genealógica daquele rebento espúrio. Voltei da Escócia com quase meio milhão de libras e um brasão para gravar em minhas cuecas. Fizeram-me barão de não sei qual lugar, e eu vendi o baronato lá mesmo, na Bolsa de Londres, com a libra bem cotada.
Quando o irmão suspeitou de Gilberta, eu me sacrifiquei: disse que era o pai da criança. O irmão chorou duas noites e dois dias, mas logo se consolou sabendo que a sua desgraça ficava em família.
Estou rico, honrado e ilustre. Sou verbete na enciclopédia do Antonio Houaiss. Tenho tudo, menos uma coisa: mulher. Pois a única que me satisfaria, a única que conseguiria amar, a única que me fala ao pau e ao sentimento, é Gilberta. Mas alguma coisa me trava. Um perdoável escrúpulo de não querer trair o irmão. Nem as honras nem o dinheiro conseguiram me despojar dos preconceitos da classe. Sou um pequeno-burguês. E já fui citado como reserva moral da nação.


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