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Livros - Crítica/narrativa
Relato de Le Corbusier revela olhar europeu sobre o Oriente
Edição inédita reproduz textos e desenhos que o arquiteto realizou em 1911
LUIZ RECAMÁN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Mais um relato de viagens de Le Corbusier
é traduzido no Brasil,
dentro da série de obras desse
arquiteto que vem sendo editada recentemente pela Cosacnaify. Neste caso, uma "viagem
de formação" como a que empreendera à Itália em 1907, seguindo o destino de tantos outros intelectuais e artistas europeus que buscavam formação clássica. Agora ele adentra
o continente pelo Danúbio no
ano de 1911, lentamente pelas
estranhas paisagens dos Bálcãs
até Istambul, retornando em
seguida pela Grécia e novamente à Itália.
Partindo da Alemanha, onde
estivera em contato com um
ambiente cultural intenso, Le
Corbusier e seu amigo Auguste
Klipstein realizam essa longa
viagem de seis meses, com um
olhar pictórico (por volta de
300 desenhos e 500 fotos!). Inicia-se aí a famosa série de "carnets" (pequenos cadernos quadriculados), que o arquiteto rabiscará durante toda sua vida.
O texto traduzido deve corresponder ao original revisado
pelo próprio autor meses antes
de morrer, em 1965. Nesse ano,
resolve retomar a publicação,
cujos originais concluídos em
1914 encontrara por acaso nas
caixas de seu escritório, quando preparava o premonitório
"Mise au Point" (acerto de contas). Essa informação, que não
consta da presente edição, ajudaria a esclarecer a respeito da
famosa edição em fac-símile
dos cadernos originais dessa
"Viagem do Oriente", publicados pela Fundação LC nos anos
80. Neles, Le Corbusier anotava freneticamente tudo o que
observava, além de garatujar os
artigos que enviava para a
"Feuille d'Avis", de La Chaux-de-Fonds, cidade suíça onde
nascera em 1887. Palavra, escrita ou falada, e desenhos rabiscados sempre formaram uma
unidade na expressão corbusiana e povoam já o imaginário da
modernidade.
Acrópole de Atenas
Mitólogos de plantão encontraram nas suas descrições de
juventude o germe das formulações geniais que ele começará
a produzir alguns anos depois.
Principalmente na relação de
sua obra com a arquitetura
clássica, em especial a Acrópole
de Atenas, que visitou diariamente durante três semanas.
Duas impressões se fixam, no
entanto, numa leitura mais livre. Primeiro, o olhar do europeu, captando a diluição desse
conceito em direção ao Oriente. Nesse momento único, no
qual o passado parece um depósito de objetos a ser formalmente capturado, e o futuro,
uma construção em aberto, ele
não esconde seu desprezo pela
realidade registrada da dissolução austro-húngara. Avança como um batedor que anuncia o
novo momento ao qual nada escapará. Uma certeza que a
guerra iminente vai impor com
violência, antecipada visualmente no incêndio em Istambul. Nada mais destoante que
ler as descrições da vida pacata
ao longo do Danúbio e imaginá-las como cenário da Primeira
Guerra três anos depois (ele
também visita a Sérvia, local no
qual se deflagra o conflito).
A segunda impressão se conecta à primeira, pois esse
olhar europeu que percorre as
planícies, vales, povoados e
monumentos fixa o valor plástico das coisas. Descreve a harmonia das linhas, dos planos e
das cores de tal maneira que
parece exigir reparos dos eventos que perturbem essa ordem
plástica. São textos-desenho ou
textos-pintura, de influência
pós-impressionista, numa linha já crítica à art nouveau.
Projeto moderno
Nesse mundo de formas passíveis de rearranjo, talvez se
possa antever o formalismo intrínseco ao projeto moderno
em construção, na esteira da
autonomia estética. Perceptível é, no entanto, a influência
do ponto de vista alemão nesse
período: uma transição sem
conflitos entre o saber técnico
popular e a formação erudita
do artista, que deverá resultar
no novo desenho da nova indústria. Bem distante das discussões do pós-guerra, na imposição da seriação industrial,
na qual tanto a Bauhaus quanto
o maduro Le Corbusier irão se
engajar sem hesitação.
Porém, o estudo dessas viagens de juventude, se podem
ajudar a explicar certas referências da obra adulta (pintura,
arquitetura e urbanismo), não
podem explicar o essencial: a
radicalidade das propostas do
mestre nos anos 20 e 30. A
tranqüilidade arrogante das
certezas registradas nessa viagem, presa ainda aos fenômenos pelo olhar particular, será
substituída por uma universalidade que se afasta progressivamente da realidade social cada
vez mais conflitada, cumprindo
a agenda das vanguardas artísticas. Esse distanciamento corresponde à nova série de viagens que incluem o Brasil em
duas oportunidades (1929 e
1936). Le Corbusier encontrava
assim a sua tábula rasa.
LUIZ RECAMÁN é professor de estética no departamento de arquitetura e urbanismo na USP,
em São Carlos (SP), e da Pontifícia Universidade
Católica, em Campinas (SP). É co-autor de "Arquitetura Moderna Brasileira" (Phaidon).
A VIAGEM DO ORIENTE
Autor: Le Corbusier
Tradução: Paulo Neves
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 39 (216 págs.)
Avaliação: bom
Leia trecho
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