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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
A mordida do ensimesmado
Instaladas no impasse, as tramas de Galera dão atualidade à vocação da narrativa moderna
TOME UM herói negativo, ainda
jovem, fora dos trilhos da
maioria, desconfiado do lusco-fusco de uma luz no fim do túnel
qualquer, mais à vontade na paralisia e na inação. Coloque-o em situações decisivas, confrontado à pressão pelo enquadramento, resistindo
a uma maturidade forçada equivalente à resignação. Assim são os protagonistas dos romances de Daniel
Galera (1979), publicitário paulista
"convertido" gaúcho, escritor com
um pé na internet e outro nas políticas públicas de incentivo à literatura, junto à Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.
Tradutor, idealizador de uma editora de literatura contemporânea (a
Livros do Mal), Galera reeditou pela
Companhia das Letras seu segundo
romance, "Até o Dia em que o Cão
Morreu", prestes a estrear no cinema, adaptado por Beto Brant e Leonardo Ciasca, como "Cão Sem Dono". É a história deste homem anônimo, de 20 e poucos anos, suspenso
nas alturas de um apartamento quase vazio de Porto Alegre, vivendo da
mesada dos pais, adiando a vida ativa e resumindo a afetiva à convivência esporádica com um vira-lata brigão e com Marcela, uma modelo que
acolhe pela metade, numa intimidade entrecortada.
Não deixa de ser curioso que o
narrador em primeira pessoa, cartorial no registro de sua rotina entediada, pouco dado a excessos no estilo, produza no leitor o impacto de
um tipo de sua geração, para a qual a
adolescência prolongada e a hesitação em abraçar bandeiras é, mais do
que escolha, sintoma e, ao mesmo
tempo, esteja tão filiado a uma tradição moderna de narradores solipsistas, à margem, do dostoievskiano
homem do subsolo ao protagonista
das narrativas de Kafka.
Em "Mãos de Cavalo" (2006), seu
terceiro romance, os fios que alternam a infância nas ruas de um menino de classe média baixa e o sucesso
profissional de um cirurgião plástico entrelaçam-se também a partir
da perspectiva marginal do protagonista, ao mesmo tempo siderado pela e resistente à possibilidade da inclusão no grupo (galera, para o menino, tribo dos bem-sucedidos, para
o homem). Também lá, ainda que
num enredo mais movimentado, os
ritos de passagem, o medo das escolhas, dos atos e suas conseqüências,
do custo da afirmação altiva da individualidade e da recusa a compactuar estão em foco.
Instaladas no impasse, as tramas
de Galera dão atualidade à vocação
da narrativa moderna, examinando
nosso acuamento em ilhas de subjetividade, mundos particulares que
há muito deixaram, se alguma vez o
foram, de ser espaçosos e acolhedores. Se elas sucumbem a alguma
concessão, o fazem por admitir em
algum grau o mito do herói "solitário e renegado", capaz de desatar os
nós que tem o mérito de enxergar
(como no desfecho de "Até o Dia...",
em que um possível recomeço integrado para o personagem se insinua). A literatura pode constatar as
portas fechadas; abri-las, são outros
quinhentos.
ATÉ O DIA EM QUE O CÃO MORREU
Autor: Daniel Galera
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28,50 (104 págs.)
Avaliação: bom
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