São Paulo, sábado, 28 de abril de 2007

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

A mordida do ensimesmado

Instaladas no impasse, as tramas de Galera dão atualidade à vocação da narrativa moderna

TOME UM herói negativo, ainda jovem, fora dos trilhos da maioria, desconfiado do lusco-fusco de uma luz no fim do túnel qualquer, mais à vontade na paralisia e na inação. Coloque-o em situações decisivas, confrontado à pressão pelo enquadramento, resistindo a uma maturidade forçada equivalente à resignação. Assim são os protagonistas dos romances de Daniel Galera (1979), publicitário paulista "convertido" gaúcho, escritor com um pé na internet e outro nas políticas públicas de incentivo à literatura, junto à Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.
Tradutor, idealizador de uma editora de literatura contemporânea (a Livros do Mal), Galera reeditou pela Companhia das Letras seu segundo romance, "Até o Dia em que o Cão Morreu", prestes a estrear no cinema, adaptado por Beto Brant e Leonardo Ciasca, como "Cão Sem Dono". É a história deste homem anônimo, de 20 e poucos anos, suspenso nas alturas de um apartamento quase vazio de Porto Alegre, vivendo da mesada dos pais, adiando a vida ativa e resumindo a afetiva à convivência esporádica com um vira-lata brigão e com Marcela, uma modelo que acolhe pela metade, numa intimidade entrecortada.
Não deixa de ser curioso que o narrador em primeira pessoa, cartorial no registro de sua rotina entediada, pouco dado a excessos no estilo, produza no leitor o impacto de um tipo de sua geração, para a qual a adolescência prolongada e a hesitação em abraçar bandeiras é, mais do que escolha, sintoma e, ao mesmo tempo, esteja tão filiado a uma tradição moderna de narradores solipsistas, à margem, do dostoievskiano homem do subsolo ao protagonista das narrativas de Kafka. Em "Mãos de Cavalo" (2006), seu terceiro romance, os fios que alternam a infância nas ruas de um menino de classe média baixa e o sucesso profissional de um cirurgião plástico entrelaçam-se também a partir da perspectiva marginal do protagonista, ao mesmo tempo siderado pela e resistente à possibilidade da inclusão no grupo (galera, para o menino, tribo dos bem-sucedidos, para o homem). Também lá, ainda que num enredo mais movimentado, os ritos de passagem, o medo das escolhas, dos atos e suas conseqüências, do custo da afirmação altiva da individualidade e da recusa a compactuar estão em foco.
Instaladas no impasse, as tramas de Galera dão atualidade à vocação da narrativa moderna, examinando nosso acuamento em ilhas de subjetividade, mundos particulares que há muito deixaram, se alguma vez o foram, de ser espaçosos e acolhedores. Se elas sucumbem a alguma concessão, o fazem por admitir em algum grau o mito do herói "solitário e renegado", capaz de desatar os nós que tem o mérito de enxergar (como no desfecho de "Até o Dia...", em que um possível recomeço integrado para o personagem se insinua). A literatura pode constatar as portas fechadas; abri-las, são outros quinhentos.


ATÉ O DIA EM QUE O CÃO MORREU
Autor: Daniel Galera
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28,50 (104 págs.)
Avaliação: bom


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