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Violoncelista Rostropovich morre aos 80
Debilitado pela luta contra o câncer, músico russo, que teve amplo reconhecimento em vida, também foi regente e pianista
Em suas visitas ao Brasil, o maior violoncelista do pós-guerra costumava trazer maleta cheia de bebidas alcoólicas
IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Reconhecido como o maior
violoncelista do pós-guerra e
também como o mais destacado ícone musical russo da atualidade, Mstislav Rostropovich
(pronuncia-se "rostropóvitch")
morreu ontem no Centro Oncológico de Moscou.
Slava (hipocorístico de
Mstislav), como era conhecido,
havia feito sua última aparição
pública em 27 de março, no
concerto de gala que celebrou
seu 80º aniversário. Debilitado
pela luta contra o câncer, não
teve condições de tocar, mas foi
tratado pela mídia como lenda
viva -ao longo de toda a semana, a TV russa exibia documentários e concertos do musicista,
muito embora suas promessas
de não mais tocar no país devido a algumas críticas desfavoráveis que recebera na imprensa tenham diluído a unanimidade de que antes desfrutava.
Rostropovich nasceu em Baku, capital do Azerbaijão, em
uma família musical: o pai, Leopold, era um menino-prodígio
do violoncelo, aluno do legendário catalão Pablo Casals, enquanto a mãe, Sofia, atuava como pianista acompanhadora.
Para dar melhores condições
de aprendizado a Slava, a família se mudou para Moscou, em
cujo conservatório Rostropovich seria aluno e, posteriormente, professor. Nos anos 50,
ele estava, ao lado de monstros
sagrados como David Oistrakh
(violino) e Sviatoslav Richter
(piano), entre os nomes que a
URSS permitiu que viajassem
ao exterior para maravilhar os
ocidentais com sua excelência.
Sob regência de Herbert von
Karajan, os três fizeram uma
gravação que marcou época do
"Concerto Tríplice", de Beethoven. E a performance que
Rostropovich fez com Richter
das sonatas para violoncelo e
piano de Beethoven, no festival
de Aldeburgh, no Reino Unido,
em 1964, atualmente disponível em DVD, permanece como
um documento dos milagres de
precisão, espontaneidade e calor de que aquela geração de
músicos russos era capaz.
A excelência técnica não era
pequena. Enquanto os braços
obedeceram seu comando,
Rostropovich foi capaz de emitir um som vigoroso e cheio em
todos os registros do instrumento. A afinação era precisa e
imaculada, enquanto a técnica
permitia-lhe percorrer todos
os degraus da escala dinâmica,
mesmo quando tocando em
"pízzicato" (beliscando as cordas, sem a utilização do arco).
Pianista e acompanhador
Casou-se, em 1955, com a
maior estrela do Teatro Bolshoi
daquela época, a soprano Galina Vishnevskaya. Ao lado da esposa, desenvolveu habilidades
de sensível pianista acompanhador; e também começou a
reger -como maestro, era louvada sua expressividade, embora a precisão não fosse a mesma
que ele obtinha ao violoncelo.
De gosto eclético e interessado em música contemporânea,
Rostropovich contribuiu decisivamente para a ampliação do
repertório de seu instrumento.
Amigo de compositores, estreou obras de Prokofiev, Chostakovitch, Lutoslawski, Penderecki, Britten, Berio, Bernstein
e outros. O argentino Astor
Piazzolla escreveu uma peça
para ele -"Le Grand Tango".
Mas suas amizades estavam
longe de se restringir ao mundo
da música -e incluíam o vencedor do Prêmio Nobel Aleksandr Sojenítsin, que denunciara as mazelas do regime soviético em livros como "Arquipélago Gulag" e "Um Dia na Vida de Ivã Denissovitch".
Tendo acolhido o escritor em
sua casa de campo, o músico escreveu, em 1970, uma carta
aberta à imprensa soviética, em
defesa do amigo. Embora não
publicada, a missiva causou
problemas políticos ao violoncelista, que acabou tendo que
deixar o país em 1974, para ter
sua cidadania cassada em 1978.
No Ocidente, virou regente
titular da Orquestra Nacional
de Washington, em 1977, à
frente da qual permaneceria
até 1994. Reabilitado pela "perestroika" de Mikhail Gorbatchov, voltou a tocar em sua terra natal em 1990 -em agosto
do ano seguinte, com grande
estardalhaço, fez-se fotografar
em Moscou, empunhando um
fuzil Kalashnikov, em apoio a
Boris Iéltsin, contra a malograda tentativa dos comunistas de
retomarem o poder.
No Brasil, esteve várias vezes, como violoncelista e como
regente, trazendo a tiracolo a
maleta cheia de garrafas de bebidas alcoólicas que era uma de
suas marcas registradas. Estava
no Rio, em 1994, quando a seleção brasileira voltou da vitoriosa campanha na Copa do Mundo dos EUA. Em conseqüência,
em sua apresentação no Teatro
Municipal, subiu ao palco enrolado na bandeira do Brasil, recebendo uma das mais consagradoras ovações que aquela
casa já presenciou.
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