São Paulo, sexta-feira, 28 de maio de 2004

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CRÍTICA

Longa transfunde erudito e popular em utopia libertadora

DO COLUNISTA DA FOLHA

Há três vias pelas quais o homem pode "sair de si" e escapar, ainda que momentaneamente, do reino da necessidade, da escravidão do tempo produtivo: o sexo, a religião e a arte.
Essas três vias estão sintetizadas no signo de Eros, ou, para dizer de outro modo, numa concepção elevada de erotismo, cara ao escritor e filósofo francês Georges Bataille e aparentemente uma das linhas de força centrais de "Filme de Amor".
Ao se reunirem num apartamento para um fim de semana de prazeres, os três trabalhadores suburbanos interpretados por Bel Garcia, Josie Antello e Fernando Eiras não apenas encarnam uma nova versão do mito das três Graças ou Cárites, não apenas encenam ritualisticamente imagens marcantes da iconografia erótica e falam sobre as relações entre arte e hedonismo, mas principalmente subvertem o curso e o sentido do tempo cotidiano que os escraviza.
Por isso, nessa "colcha de retalhos erótica" (palavras de Bressane), tão importantes quanto as citações de momentos célebres da pintura e da literatura -de Botticelli e Courbet a Balthus, passando pelo próprio Bataille- são os momentos em que pequenos gestos cotidianos são modificados, invertidos e pervertidos.
Um exemplo é a cena em que o personagem Gaspar (Eiras) frita um bife no ferro de passar roupa, um ato de reinvenção do uso das coisas que remete a Marcel Duchamp e aos surrealistas.
Mas o que há de mais extraordinário em "Filme de Amor", à parte a beleza inexcedível de certas cenas (como aquela em que as personagens parecem flutuar no espaço), é a maneira como Bressane imbrica o erudito e o popular, enlace que sempre foi um dos motores de seu cinema, mas que aqui atinge um ápice.
Esse trânsito é sublinhado tanto pela fotografia, com sua alternância cromática e de texturas, como pela inspirada trilha musical. O ponto alto desse diálogo entre mundos em geral estanques é o plano noturno da baía de Guanabara em preto-e-branco, ao som de Dalva de Oliveira cantando "Hino ao Amor", de Edith Piaf, que precede o retorno dos personagens à sua rotina.
Por todos os minutos finais do filme, nas imagens do dia-a-dia, reverbera a poesia poderosa daquele momento de autêntica epifania. Como ocorre com toda expressão poética, é impossível explicar seu sentido pleno, mas certamente ele aponta para uma utopia política e estética, aquela em que o indivíduo mais obscuro pode tocar, ainda que por um instante, a divindade.
(JOSÉ GERALDO COUTO)


Filme de Amor
    
Produção: Brasil, 2003
Direção: Julio Bressane
Com: Bel Garcia, Josie Antello, Fernando Eiras
Quando: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco e Gemini



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