|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Longa transfunde erudito e popular em utopia libertadora
DO COLUNISTA DA FOLHA
Há três vias pelas quais o homem pode "sair de si" e escapar, ainda que momentaneamente, do reino da necessidade,
da escravidão do tempo produtivo: o sexo, a religião e a arte.
Essas três vias estão sintetizadas
no signo de Eros, ou, para dizer de
outro modo, numa concepção
elevada de erotismo, cara ao escritor e filósofo francês Georges Bataille e aparentemente uma das linhas de força centrais de "Filme
de Amor".
Ao se reunirem num apartamento para um fim de semana de
prazeres, os três trabalhadores suburbanos interpretados por Bel
Garcia, Josie Antello e Fernando
Eiras não apenas encarnam uma
nova versão do mito das três Graças ou Cárites, não apenas encenam ritualisticamente imagens
marcantes da iconografia erótica
e falam sobre as relações entre arte e hedonismo, mas principalmente subvertem o curso e o sentido do tempo cotidiano que os
escraviza.
Por isso, nessa "colcha de retalhos erótica" (palavras de Bressane), tão importantes quanto as citações de momentos célebres da
pintura e da literatura -de Botticelli e Courbet a Balthus, passando pelo próprio Bataille- são os
momentos em que pequenos gestos cotidianos são modificados,
invertidos e pervertidos.
Um exemplo é a cena em que o
personagem Gaspar (Eiras) frita
um bife no ferro de passar roupa,
um ato de reinvenção do uso das
coisas que remete a Marcel Duchamp e aos surrealistas.
Mas o que há de mais extraordinário em "Filme de Amor", à parte a beleza inexcedível de certas
cenas (como aquela em que as
personagens parecem flutuar no
espaço), é a maneira como Bressane imbrica o erudito e o popular, enlace que sempre foi um dos
motores de seu cinema, mas que
aqui atinge um ápice.
Esse trânsito é sublinhado tanto
pela fotografia, com sua alternância cromática e de texturas, como
pela inspirada trilha musical. O
ponto alto desse diálogo entre
mundos em geral estanques é o
plano noturno da baía de Guanabara em preto-e-branco, ao som
de Dalva de Oliveira cantando
"Hino ao Amor", de Edith Piaf,
que precede o retorno dos personagens à sua rotina.
Por todos os minutos finais do
filme, nas imagens do dia-a-dia,
reverbera a poesia poderosa daquele momento de autêntica epifania. Como ocorre com toda expressão poética, é impossível explicar seu sentido pleno, mas certamente ele aponta para uma utopia política e estética, aquela em
que o indivíduo mais obscuro pode tocar, ainda que por um instante, a divindade.
(JOSÉ GERALDO COUTO)
Filme de Amor
Produção: Brasil, 2003
Direção: Julio Bressane
Com: Bel Garcia, Josie Antello,
Fernando Eiras
Quando: a partir de hoje nos cines
Espaço Unibanco e Gemini
Texto Anterior: Cinema/estréias: Bressane convoca Eros contra o tempo Próximo Texto: "O Outro Lado da Rua" embaralha os modos de ver Índice
|