São Paulo, sábado, 28 de maio de 2005

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CRÍTICA

Folias expõe a utopia possível em espetáculo

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Eu não quero saber da revolução, eu quero saber de mim". A citação aproximada desse pungente texto do venezuelano José Ignácio Cabrujas parece dobrar os sinos para a crença no socialismo. No entanto, como endossa o diretor Marco Antonio Rodrigues no programa de "El Dia que me Quieras", "a reafirmação do socialismo (é que) tudo se articula, e cada homem é responsável pelo mundo inteiro". A utopia é responsabilidade de cada indivíduo, mas como não cair na automistificação?
Cabrujas veio da telenovela, mas sempre soube utilizar a farsa popular de cada dia como um irreverente instrumento de análise das mediocridades e pequenos heroísmos da América Latina. O dilema de Maria Luíza entre ir para uma fabulosa União Soviética, com o eterno noivo Pio que a ilude, e presenciar uma milagrosa porém real vinda de Carlos Gardel à seu decadente casarão, deixando nela a marca indelével do mito do "self-made man", é facilmente identificável: qual a melhor utopia, a fama ou a revolução?
Rodrigues, assistido por Atilo Beline Vaz, soube tirar desse humor desesperado um belo espetáculo, que aceita de peito aberto todos os excessos do texto, concretizando em imagens precisas e hilárias cada evocação dos diálogos, provando sobretudo que o vaudeville nativo não tem porque se condenar a uma grosseria reacionária e mal-acabada, que acha que o riso fácil justifica tudo, como infelizmente ainda é regra.
Contra os carrascos da inteligência a peça usa soluções refinadas, como os belos figurinos de Vaz e o cenário de Ulisses Cohn, que não hesita em transbordar para a calçada, e um acompanhamento musical ao vivo.
O espetáculo se impõe pelo entusiasmo dos atores. Simoni Boer dá conta da complicada partitura de Maria Luiza com uma felicidade de criança, inocência em contraponto ao histrionismo da Tia Elvira de Bete Dorgam, que escapa aos clichês graças a uma apurada técnica de clown. Reinaldo Maia, no implausível galã Pio, tem um grande momento no final, quando reafirma sua fé na utopia. E quando Gardel canta pela voz e prumo de Dagoberto Feliz a esperança de ver a rosa se vestir de festa, o riso e a melancolia se misturam ao se expor assim nossa precariedade. Quando o sonho do fim da fome deságua em sórdidas histórias de correios, resta o riso como último bastião da utopia.


El Dia que me Quieras
     Quando: qui. a sáb., às 21h, dom., às 20h
Onde: Galpão do Folias (r. Ana Cintra, 213, Santa Cecília, tel. 3361-2223
Quanto: R$ 20


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