São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Quadrinhos capturam violência da vida urbana

Autores utilizam referências cinematográficas e a cultura underground para construir os roteiros das três álbuns recém-lançados

"Chapa Quente", "O Messias" e "Subs" retratam as misérias do cotidiano brasileiro

MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DA REPORTAGEM LOCAL

Como bem sabe qualquer habitante de grandes metrópoles brasileiras, quando bandidos como os do PCC decidem mostrar força, há pouco espaço para super-heróis e roteiros do tipo "o bem sempre vence o mal", típicos dos quadrinhos.
Mas as HQs não são sempre descoladas da realidade, como é de conhecimento de qualquer leitor do gênero. Existe uma vasta gama de quadrinhos de temática urbana, conectados à paranóia do mundo real e ao cotidiano de seus habitantes.
Três representantes dessa vertente realista estão sendo lançados agora. "Chapa Quente", de André Kitagawa, "O Messias", de Gonçalo Junior e Flávio Luiz, e "Subs", de Ulisses Tavares e Julio Shimamoto, não têm mutantes superpoderosos nem vilões que querem dominar o mundo -têm apenas o cara que brigou com a namorada, um casal que sofre um seqüestro-relâmpago, favelados, empresários, enfim, a fauna urbana regular.
"O Messias" (Opera Graphica Editora, 128 págs., R$ 29) é o mais atual dos três lançamentos, e o que tem a conexão mais clara com eventos recentes como o ataque do PCC a São Paulo e a fraqueza do poder público sobre a criminalidade. Ele retrata o medo clássico das elites e de todos os "incluídos": o dia em que o morro desce e toma a cidade de assalto.
"Eu sempre imaginei que podia acontecer algo como estes ataques recentes, um poder central comandando uma investida contra a cidade", explica o baiano Gonçalo Junior, 39, autor do roteiro ilustrado por seu conterrâneo Flávio Luiz.
A história fala de uma facção criminosa de uma favela carioca, comandada por um criminoso ascendente que se julga o tal "messias" do título. A polêmica alegoria religiosa que marca a obra não é ocasional.
"A idéia surgiu em 1997, quando era muito evidente a evangelização das favelas, a crescente presença de igrejas e pastores -foi quando começaram também as denúncias de associação de alguns deles com o tráfico", diz o autor.

Cinema em HQ
Para construir seu roteiro, Gonçalo Junior escolheu um ritmo cinematográfico, o que torna "O Messias" -todo em preto-e-branco, sem texto- "um filme mudo em quadrinhos", como diz o escritor.
"Tinha acabado de assistir ao "Encouraçado Potemkin", do diretor russo Sergei Eisenstein, e a força das imagens, do estilo narrativo ficou na minha cabeça", explica Gonçalo Junior.
O paulistano André Kitagawa, 33, é outro que se vale da narrativa de cinema, ainda que seu texto esteja mais para o submundo sujo do italiano Abel Ferrara do que para o expressionismo de Eisenstein.
As sete histórias de "Chapa Quente" (Atrito Art Editorial, 56 págs., R$ 20) precisaram ser descobertas no palco -viraram peça dirigida em parceria com Mario Bortolotto- para só então ganharem a coletânea.
"O álbum é uma mistura de histórias pessoais, casos que eu ouvi e inspiração tirada de livros, filmes, manchetes de jornal", afirma Kitagawa.
As histórias de "Chapa Quente" falam de gente como o trio de amigos que baixa na favela atrás de uma boca de fumo, o casal que pega o caminho errado e acaba indo parar na periferia, o jovem sem perspectiva que vai tomar pinga e acaba confundido com outra pessoa.
Apesar da obra de Kitagawa transbordar "toda aquela melancolia que parece vir de um mar de antenas de TV num domingo à tarde modorrento na periferia de São Paulo", como destaca Bortolotto na introdução, há momentos bem humorados, como nas histórias "O Pacote" e "Super T".

Humor
O humor em diversas formas -ironia, humor negro etc.- também marca presença em "Subs" (Via Lettera Editora, 72 págs., R$ 34), dos veteranos Ulisses Tavares e Julio Shimamoto -o primeiro, poeta, professor, dramaturgo e espírito inquieto; o segundo, uma lenda das HQs, colecionador de prêmios e ilustrador de longa data.
Curiosamente, o cinema também está na gênese de "Subs". "As história são roteiros para curtas que eu escrevi na década de 90 e que acabaram não virando filme", explica Tavares, que escolheu Shimamoto para retratar a temática de poder, dinheiro, sexo e violência que permeia os textos.
"Sempre estive muito próximos dos quadrinistas, fiz livros com o Spacca, com o Angeli, com o Ota; gosto da linguagem dos quadrinhos", afirma.
Na HQ, o poeta se permitiu mais liberdades em relação ao cotidiano, em comparação com "Chapa Quente" e "O Messias".
"O excesso de realidade violenta em que vivemos assusta e paralisa as pessoas. Os quadrinhos não são apenas espelho, eles reinterpretam a realidade, acrescentam imaginação", diz.


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