São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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DVDs

Crítica/"Flauta Mágica"

Edição comemorativa reaviva encontro de Bergman e Mozart

CASSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Antes, durante e depois de ter se tornado um dos mestres do cinema, o diretor sueco Ingmar Bergman foi também um grande homem de teatro. Sua paixão pelos artifícios da expressão teatral aponta aqui e ali nas ficções filmadas e alcança o ápice nessa adaptação feita para a TV sueca, em 1975, da ópera "A Flauta Mágica", de Mozart (1756-1791), que sai em DVD comemorativo dos 250 anos do compositor austríaco.
Em suas recordações, Bergman comenta que seu primeiro contato com uma montagem de "A Flauta Mágica" ocorreu quando tinha 12 anos e dela não guardou boas lembranças. "Foi uma representação pesada, longa. O pano subia para se mostrar uma cena breve, voltava a baixar, e atrás do pano havia grande azáfama: martelavam, construíam", registra em seu livro "Imagens".
Mais uma vez, por meio do cinema e dessas imagens que nunca se sabe se pertencem ao mundo ou aos sonhos, Bergman vai exorcizar fantasmas de infância. E o resultado é um filme-ópera que em nenhum momento sofre do cansaço provocado pelos filmes-óperas.
O gênero é tão velho quanto o próprio cinema. Nele se aventuraram desde grandes diretores, como Michael Powell e Emeric Pressburger ("Contos de Hoffmann"), Otto Preminger ("Carmen Jones"), Joseph Losey ("Don Giovanni"), Hans Jurgen Syberberg ("Parsifal") e Francesco Rosi ("Carmen"), até menores, como Franco Zefirelli ("La Traviatta") e Benoît Jacquot ("Tosca"). Mas de sua origem teatral, a ópera, quando transposta para o cinema, nunca conseguiu se livrar. A maioria dos diretores pensou fazer cinema apenas libertando os intérpretes e o canto do espaço cênico confinado e os levando a cenários cinematográficos.
Num golpe de gênio, Bergman faz o contrário. Encena quase todo o filme num palco e reduz o desconforto da teatralidade abolindo a distância que, no teatro, isola o espectador do drama. E faz isso recorrendo a um elemento que só o cinema possui: o primeiro plano. Assim, realiza um filme híbrido que em nenhum momento renega sua origem teatral e, ao mesmo tempo, ganha a clarividência das emoções que só o primeiro plano de cinema é capaz de proporcionar.
Até mesmo o tradicional intervalo entre atos é recriado sem provocar estranheza. Em vez de o público sair para uma taça de vinho, pode observar os bastidores, onde uma intérprete fuma, outro ajeita o figurino. Ao voltar para o segundo ato, o ponto-de-vista é do fundo do palco, mais um lugar onde nenhum espectador se encontra.
Como artista que respeita a grande obra alheia, Bergman guarda de Mozart o que a ópera tem de maior -a música- e metamorfoseia o resto em visões que expressam os mais freqüentes temas de seu universo pessoal: a necessidade do amor, o desespero da solidão, o sentimento ambíguo em relação aos pais e o medo da morte. Ou seja, muito mais que um filme-ópera, "A Flauta Mágica" é um filme ao mesmo tempo bergmaniano e mozarteano. Não é possível pedir mais.


A FLAUTA MÁGICA
    
Direção:
Ingmar Bergman
Distribuição: Versátil; R$ 40, em média


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