São Paulo, segunda-feira, 28 de junho de 2004

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ERUDITO/CRÍTICA

Quem não tem medo de Tchaikovski?

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Tudo estava diferente, na noite de sexta passada. O trânsito, por exemplo, fluía tão bem que até o estacionamento acolhia os carros sem estresse. No "foyer", a quantidade de ternos escuros e vestidos pretos era excepcional, mesmo para os padrões da Sala São Paulo. Rolava o coquetel do patrocinador, que depois quase estragou tudo com o vídeo projetado antes do concerto da Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio da Polônia, ao som de um pop anônimo, recebido em constrangido silêncio por todos.
Entra a sinfônica -e ataca a "Pequena Suíte" de Witold Lutoslawski (1913-94). Nem toda orquestra se revela ao primeiro compasso; mas eis uma que sim: som cheio, enérgico, de uma eficiência expressiva. A "Pequena Suíte" foi composta em 1951; está muito mais próxima da "Suíte de Danças" de Bartók -uma referência assumida quase explicitamente- do que da música posterior do próprio Lutoslawski. De quem, aliás, esta orquestra gravou a obra sinfônica completa, junto com a do outro grande compositor polonês, Penderecki (que regeu seu "Réquiem" na Sala há duas semanas).
Depois foi a vez dele, o pobre e maravilhoso "Concerto para Violino e Orquestra" de Tchaikovski (1840-93). Pobre porque desde sempre tem sido alvo de sarcasmos, que continuam se repetindo a despeito de sua posição confirmada no cânone. E maravilhoso não só no sentido espontâneo da palavra, mas porque o maravilhamento faz parte da música aqui. Toda a dificuldade, todo o virtuosismo, tudo o que o "Concerto" tem de mais chamativo justifica-se como experiência de superação, instrumental e humana. Estamos no reino do sublime romântico, que pede um violinista de coragem.
Veio. Aliás, já veio muitas vezes. Mas o russo Boris Belkin talvez nunca tenha tocado tão bem por aqui quanto na sexta. A esta altura -depois de já ter feito o mesmo Tchaikovski, há anos, com Leonard Bernstein e a Filarmônica de Nova York e o gravado duas vezes (com Ashkenazy e a Philharmonia e com Michael Stern e a Filarmônica de Londres)-, o mínimo que se pode dizer é que tem a música nos dedos. Mas o mais importante não depende só disso: um sentido das coisas, minuciosamente trabalhado a cada gesto, em cada pequena intenção.
Seu cacoete de passar os dedos ao longo do arco, entre a madeira e a crina, enquanto espera a próxima entrada, tem algo de teatral e algo de musical, assim como sua postura levemente inclinada, com os joelhos um pouco dobrados e os olhos fechados, lembrando um guitarrista de rock. Belkin toca com gana; toca também num limite da velocidade, mas fecha as escalas com um sorriso de quem está fazendo tudo com prazer. Não acertou mil por cento das arcadas, o que não tem a menor importância. Foi arrebatador.
Na segunda parte, a vigorosa sinfônica fez a "Sétima" de Dvorak (1841-1904), bem regida -de cor- por Gabriel Chmura. A glória dos poloneses são os violinos. Chmura, de sua parte, é um daqueles regentes relativamente discretos, que não chegam a encantar, mas jamais fazem um gesto musical em falso. Juntos, deram um lindo bis, a "Valsa Triste" de Sibelius (1865-1957), que fechou a noite em tons de sábia melancolia. Voltou o silêncio, então, mas não tinha mais nada de constrangido. Era música.


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