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NELSON ASCHER
Nem só de dicionários vive o tradutor
Robert Fitzgerald (que não
deve ser confundido com Edward Fitzgerald , célebre tradutor
oitocentista dos "Rubaiyat" do
poeta medieval persa Omar
Khayyam) foi um dos maiores
classicistas americanos do século
20 e verteu para sua língua, além
de várias tragédias gregas, ambos
os poemas homéricos e a "Eneida" de Virgílio. Seu trabalho foi
tão apreciado que ele se tornou o
primeiro profissional da área a
ser entrevistado pela "Paris Review".
Perto do final do primeiro canto
da epopéia virgiliana, Vênus
manda seu filho Cupido assumir
a forma de Ascânio (também
chamado de Iulo, filho de Enéias)
e fazer a rainha cartaginesa Dido
se apaixonar por Enéias, o príncipe troiano que, tendo sobrevivido
à destruição de sua cidade natal,
estava a caminho da península
italiana onde fundaria Roma. Na
versão do poema que o americano publicou em 1983, as linhas relevantes são: "to make the queen/
Infatuated, inflaming her with
lust/ to the marrow of her bones"
(para fazer a rainha apaixonar-se, inflamando-a de desejo até a
medula de seus ossos).
Isso, em inglês, soa magnificamente devido, entre outras razões, à repetição de sons semelhantes a "in" que sugerem um
movimento para dentro, uma introjeção. Surpreso pela força do
trecho, fui averiguar como ele havia sido resolvido em outras versões e como era em latim. O maranhense Odorico Mendes, em
seu esplêndido "Virgilio Brazileiro" (1858), traduziu-o assim: "nos
ossos à rainha infiltre/Insano fogo". Apesar de sua habitual concisão, ele conseguiu embutir no
texto três "in": "nos ossos à raINha INfiltre INsano fogo".
Seu conterrâneo Carlos Alberto
Nunes, já na segunda metade do
século 20, chegou à seguinte solução: "por que se insinue/ na alma
incendiada de Dido e até aos ossos seu fogo alimente", passagem
na qual sobressaem "INsinue",
"Incendiada" e "alIMente". Em
suma, todos os tradutores acima
tentaram, cada qual à sua maneira, responder a um desafio que
estava presente no verso 660 do
original ("incendat reginam, atque ossibus implicet ignem") e
pouco importa se o fizeram consciente ou inconscientemente, movidos por sons que lhes chegaram
subliminarmente ao cérebro.
O argentino Jorge Luis Borges,
que ficou mais conhecido como
contista, era também um grande
poeta e, admirador de Virgílio,
chamara "Os Lusíadas" de "Eneida lusitana". A maioria de seus
poemas é metrificada e rimada.
Em especial, ele cultivava o soneto e explicara tal apego às formas
fixas dizendo que, após perder a
visão, eram estas que, sendo mnemônicas, lhe permitiam, sem precisar de papel e tinta, compor
mentalmente um poema. Seu soneto mais famoso se intitula
"Everness" (sempridade) e o principal verso deste é logo o primeiro:
"Sólo una cosa no hay. Es el olvido".
As formas fixas, para o tradutor
que deseje trabalhar com elas, impõem problemas inescapáveis. O
castelhano é um idioma tão próximo do nosso que, às vezes, dá a
impressão de não requerer tradução, seja porque não é difícil entender o original, seja porque vertê-lo se resumiria às vezes no simples aportuguesamento de terminações e sufixos. Na hora, porém,
de lidar com um soneto como o do
argentino é que se descobrem as
dificuldades desse idioma, irmão
quase gêmeo do português.
Transpor para nossa língua a linha inicial de "Everness" parece
fácil e banal. Aportuguesando-a
chegaríamos a "Só uma coisa não
há. É o olvido". O verso não só
contém todas as palavras do castelhano, como até mesmo constitui um decassílabo métrico (que
os espanhóis chamam de hendecassílabo) tal qual o original borgesiano. Há um problema, porém: ele não soa nem como um
verso nem como algo que alguém
escreveria em português. Por quê?
Para começar, porque ninguém
no Brasil usa o verbo "haver" dessa forma. Em circunstâncias similares usamos o verbo "existir".
Em seguida, porque "coisa" em
português é mais coloquial ou
vulgar do que em espanhol. O termo correspondente para nós é
"algo". O mais complicado, no
entanto, é o verbo "olvidar". Aparentemente ele tem o mesmo sentido nas duas línguas. Ocorre que,
enquanto em espanhol ele é um
verbo corriqueiro, em português
do Brasil ele é erudito e raro. Que
brasileiro diria "olvidei as chaves
no carro"?
Há, contudo, algo pior. Diferentemente do que sucede em Portugal, o "l" de "olvido" se converte
em "u" na maior parte do Brasil,
de modo que seu som se confunde
com "ouvido". Agora, principiar
o poema escrito por um cego com
a afirmação de que é audição que
inexiste tem um quê de involuntariamente cômico. A palavra
certa em português do Brasil é
"esquecimento", embora sua utilização sabote as rimas em "ido"
do soneto. E, concluindo, a metrificação do verso aportuguesado é
ruim, com elisões desagradáveis e
as tônicas em lugares errados. Em
poucas palavras, se trata, a despeito das aparências, de um verso
dificílimo de traduzir. Minha
proposta seria "Se algo não existe,
é o esquecimento", mas há, sem
dúvida, soluções melhores.
Uma vez que se ocultam tamanhos obstáculos num único verso
latino ou castelhano, não seria a
rigor impossível traduzir um poema inteiro, por menor que seja?
Sim e não. Sim, pois sobram os
leitores e críticos que exigem ingenuamente uma literalidade inviável, tomando cada desvio necessário como um crime ou manifestação de ignorância. Não, porque tampouco faltam leitores e
críticos capazes de entender a especificidade da tradução literária, uma atividade que, praticada
há milênios, possui suas próprias
regras e requer de seu praticante
habilidades e conhecimentos que
não se acham em nenhum dicionário.
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