São Paulo, segunda-feira, 28 de junho de 2004

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NELSON ASCHER

Nem só de dicionários vive o tradutor

Robert Fitzgerald (que não deve ser confundido com Edward Fitzgerald , célebre tradutor oitocentista dos "Rubaiyat" do poeta medieval persa Omar Khayyam) foi um dos maiores classicistas americanos do século 20 e verteu para sua língua, além de várias tragédias gregas, ambos os poemas homéricos e a "Eneida" de Virgílio. Seu trabalho foi tão apreciado que ele se tornou o primeiro profissional da área a ser entrevistado pela "Paris Review".
Perto do final do primeiro canto da epopéia virgiliana, Vênus manda seu filho Cupido assumir a forma de Ascânio (também chamado de Iulo, filho de Enéias) e fazer a rainha cartaginesa Dido se apaixonar por Enéias, o príncipe troiano que, tendo sobrevivido à destruição de sua cidade natal, estava a caminho da península italiana onde fundaria Roma. Na versão do poema que o americano publicou em 1983, as linhas relevantes são: "to make the queen/ Infatuated, inflaming her with lust/ to the marrow of her bones" (para fazer a rainha apaixonar-se, inflamando-a de desejo até a medula de seus ossos).
Isso, em inglês, soa magnificamente devido, entre outras razões, à repetição de sons semelhantes a "in" que sugerem um movimento para dentro, uma introjeção. Surpreso pela força do trecho, fui averiguar como ele havia sido resolvido em outras versões e como era em latim. O maranhense Odorico Mendes, em seu esplêndido "Virgilio Brazileiro" (1858), traduziu-o assim: "nos ossos à rainha infiltre/Insano fogo". Apesar de sua habitual concisão, ele conseguiu embutir no texto três "in": "nos ossos à raINha INfiltre INsano fogo".
Seu conterrâneo Carlos Alberto Nunes, já na segunda metade do século 20, chegou à seguinte solução: "por que se insinue/ na alma incendiada de Dido e até aos ossos seu fogo alimente", passagem na qual sobressaem "INsinue", "Incendiada" e "alIMente". Em suma, todos os tradutores acima tentaram, cada qual à sua maneira, responder a um desafio que estava presente no verso 660 do original ("incendat reginam, atque ossibus implicet ignem") e pouco importa se o fizeram consciente ou inconscientemente, movidos por sons que lhes chegaram subliminarmente ao cérebro.
O argentino Jorge Luis Borges, que ficou mais conhecido como contista, era também um grande poeta e, admirador de Virgílio, chamara "Os Lusíadas" de "Eneida lusitana". A maioria de seus poemas é metrificada e rimada. Em especial, ele cultivava o soneto e explicara tal apego às formas fixas dizendo que, após perder a visão, eram estas que, sendo mnemônicas, lhe permitiam, sem precisar de papel e tinta, compor mentalmente um poema. Seu soneto mais famoso se intitula "Everness" (sempridade) e o principal verso deste é logo o primeiro: "Sólo una cosa no hay. Es el olvido".
As formas fixas, para o tradutor que deseje trabalhar com elas, impõem problemas inescapáveis. O castelhano é um idioma tão próximo do nosso que, às vezes, dá a impressão de não requerer tradução, seja porque não é difícil entender o original, seja porque vertê-lo se resumiria às vezes no simples aportuguesamento de terminações e sufixos. Na hora, porém, de lidar com um soneto como o do argentino é que se descobrem as dificuldades desse idioma, irmão quase gêmeo do português.
Transpor para nossa língua a linha inicial de "Everness" parece fácil e banal. Aportuguesando-a chegaríamos a "Só uma coisa não há. É o olvido". O verso não só contém todas as palavras do castelhano, como até mesmo constitui um decassílabo métrico (que os espanhóis chamam de hendecassílabo) tal qual o original borgesiano. Há um problema, porém: ele não soa nem como um verso nem como algo que alguém escreveria em português. Por quê?
Para começar, porque ninguém no Brasil usa o verbo "haver" dessa forma. Em circunstâncias similares usamos o verbo "existir". Em seguida, porque "coisa" em português é mais coloquial ou vulgar do que em espanhol. O termo correspondente para nós é "algo". O mais complicado, no entanto, é o verbo "olvidar". Aparentemente ele tem o mesmo sentido nas duas línguas. Ocorre que, enquanto em espanhol ele é um verbo corriqueiro, em português do Brasil ele é erudito e raro. Que brasileiro diria "olvidei as chaves no carro"?
Há, contudo, algo pior. Diferentemente do que sucede em Portugal, o "l" de "olvido" se converte em "u" na maior parte do Brasil, de modo que seu som se confunde com "ouvido". Agora, principiar o poema escrito por um cego com a afirmação de que é audição que inexiste tem um quê de involuntariamente cômico. A palavra certa em português do Brasil é "esquecimento", embora sua utilização sabote as rimas em "ido" do soneto. E, concluindo, a metrificação do verso aportuguesado é ruim, com elisões desagradáveis e as tônicas em lugares errados. Em poucas palavras, se trata, a despeito das aparências, de um verso dificílimo de traduzir. Minha proposta seria "Se algo não existe, é o esquecimento", mas há, sem dúvida, soluções melhores.
Uma vez que se ocultam tamanhos obstáculos num único verso latino ou castelhano, não seria a rigor impossível traduzir um poema inteiro, por menor que seja? Sim e não. Sim, pois sobram os leitores e críticos que exigem ingenuamente uma literalidade inviável, tomando cada desvio necessário como um crime ou manifestação de ignorância. Não, porque tampouco faltam leitores e críticos capazes de entender a especificidade da tradução literária, uma atividade que, praticada há milênios, possui suas próprias regras e requer de seu praticante habilidades e conhecimentos que não se acham em nenhum dicionário.


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