São Paulo, sábado, 28 de julho de 2001

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"CISNE DE FELTRO" E "ALHOS & BUGALHOS"

Mendes Campos redescobre o tempo

RODRIGO MOURA
DA REPORTAGEM LOCAL

As crônicas de Paulo Mendes Campos (1922-1991) parecem nos jogar numa espécie de enigma do tempo. É como se o leitor fosse instigado a reinventar seu próprio tempo por meio da experiência descrita pelo autor-narrador -numa narrativa que toma do poema e do conto características temporais mais fortes.
No espaço curto de seus textos, o tempo nunca tem a medida linear, cabendo ao leitor a tentativa de se encontrar nesse mosaico cronológico -composto sobretudo pela experiência do indivíduo no tempo subjetivo, mas também no tempo da história.
Em "Cisne de Feltro", suas "crônicas autobiográficas" que dão seguimento ao relançamento de sua obra ao lado das "humorísticas" de "Alhos & Bugalhos", o tempo assume um papel ainda mais forte. A autobiografia, tema central a toda a sua geração, aparece em vários momentos de sua obra -em quase toda, para fazer justiça-, o que torna arriscado falar em "crônicas autobiográficas".
Desde o ano passado, a obra deste mineiro, considerado "primus inter pares" entre seus companheiros de geração, vem sendo organizada em volumes temáticos. Tal escolha, que obedece a critérios de reinserção de seus textos no mercado, bate numa questão crucial à organização póstuma de qualquer obra: como manter a visada original do autor sobre sua produção se abandonamos seus critérios originais.
No caso dos livros de PMC, o organizador Flávio Pinheiro vai certamente se ver no ingrato papel de desmembrar obras importantes, em nome de suas "hipóteses temáticas"; mas obteve pelo menos um importante mérito com "Cisne de Feltro", onde o universo do autor ressurge recomposto com potência, redescoberto no tempo.
Extraído de um verso de Neruda em "Walking Around" ("impenetrable, como un cisne de fieltro"), o título autobiográfico revela o autor em momentos de profunda ligação e revisitação de seu ethos. Paulo Mendes Campos evidencia um compromisso ético existencial de origem (saber o que é visão de mundo aos 20 anos, incluía entre "Coisas Deleitáveis"), que revisita, ao lado do leitor, nas várias escalas desses textos:
Na "Autobiografia" que abre o livro; nos perfis em que ausculta suas heranças imaginárias, recebidas dos antepassados; na infância no interior de Minas; na experiência da "roça iluminada" que vê virar cidade em Belo Horizonte; na mesma "Rua da Bahia" que Pedro Nava dissecou em "Beira Mar"; na lembrança iniciática do Carnaval; nos primeiros empregos; na vivência da fome no Rio, à chegada da idade madura; no crepúsculo; na insônia; na despedida de uma janela em Ipanema.
Fecha o volume, ponto alto, uma série de crônicas nas quais PMC descreve suas experiências com o LSD em 1962. Publicados em "Manchete", seus relatos lisérgicos revelam uma nova experiência com o tempo e o reencontro com o menino que lhe aparece aos 40 anos. PMC conclui: "O ácido lisérgico a meu ver deveria ser um ponto de partida para a recuperação da realidade, dos dons de percepção (...)".
Entre as crônicas humorísticas de "Alhos & Bugalhos", o problema da disjunção se torna mais patente: há certo desnível entre os textos, e alguns temas parecem agora sem a menor importância.
É, sem dúvida, em "Cisne de Feltro" onde somos mais instigados a reencontrar o autor, que ali se vê num encontro marcado consigo mesmo. Ou, para citá-lo, como disse nos primeiros versos do poema "Visita a Belo Horizonte", que dedica a Otto Lara Resende: "Posso viver em qualquer parte/ É sempre uma história".


Alhos & Bugalhos
   
Autor: Paulo Mendes Campos
Editora: Civilização Brasileira
Organização: Flávio Pinheiro
Quanto: R$ 25 (222 págs.)



Cisne de Feltro
    
Autor: Paulo Mendes Campos
Editora: Civilização Brasileira
Organização: Flávio Pinheiro
Quanto: R$ 20 (142 págs.)




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