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São Paulo, segunda-feira, 28 de julho de 2003

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NELSON ASCHER

Você decide

Muitos manuais discutem a dificuldade de traduzir palavras ou expressões que, de tão enraizadas em experiências geograficamente circunscritas, seriam inteligíveis apenas na língua de origem. Este é o caso de "sertão", termo que, no Brasil, evoca "Asa Branca", os romances de Graciliano ou os filmes de Glauber. Embora tal brasileirismo, remetendo-nos a seca e retirantes, nomeie uma singularidade intraduzível, os piores momentos do drama nordestino têm coincidido com estiagens na África do Sul, inundações no norte do Peru etc.
Foi em meados dos anos 80 que se determinou a origem comum destes e de outros fenômenos aparentemente desconexos, pois todos se devem à interação entre as temperaturas do ar e da superfície marinha no Pacífico central e ocidental que, repetindo-se há milhares de milênios com intensidades diferentes e em intervalos irregulares (de dois a dez anos) nas latitudes equatoriais, desencadeia o assim chamado El Niño. Graças a ele, as tragédias sofridas por incas nos Andes, bosquímanos no Calaári ou aborígenes australianos sempre estiveram relacionadas com a miséria de Severino, filho de Maria.
Por menos que lhe tenhamos ainda esmiuçado os detalhes, o caráter global do clima salta aos olhos. Já a globalização zoológica é mais nova. Faz pouco que, descontando enclaves isolados como a Austrália, os mamíferos placentários, ocupando-lhes os hábitats, levaram à extinção seus pobres primos marsupiais. A colonização humana do planeta inteiro não passa de um capítulo daquela, e é sobretudo por causa de sua triste nota de rodapé (não de um "holocausto" intencional), a unificação epidemiológica da humanidade, que desapareceram 95% dos colonos chegados às Américas antes de 1492.
Como, para pessoas concretas, a "longa duração" de que falava Fernand Braudel consiste num pano de fundo imune à ação do homem, o desinteresse nacional pela política internacional que, das nossas praias, parece às vezes tão ininfluenciável quanto os fenômenos climáticos, é mais do que compreensível, se bem que não menos frustrante. Daí, quem sabe, o costume de tratarmos não só os acontecimentos mas também os modelos políticos estrangeiros como abstrações remotas: afinal, o que é que eles têm a ver conosco?
Absolutamente tudo. E é a cegueira voluntária induzida por um preconceito etno-racial, religioso, elitista, nacionalista e ideológico, importado do Velho Mundo, o antiamericanismo, que leva meus conterrâneos a idealizarem uma Europa que nunca existiu.
Esse preconceito (que nada tem a ver com a crítica à política real de um país real), se não foi gerado, vem sendo difundido a todo vapor, com o auxílio de seus dependentes (a intelectualidade e a imprensa locais), pelos governos europeus. Seu alvo preferencial são as próprias populações do continente que, habituadas tanto pela mídia oficial e oficiosa quanto pelo sistema educacional (como o haviam sido, antes, os súditos da defunta URSS) a ver na "Amerika" uma sociedade em crise perpétua, habitada por gente religiosa, obesa, vulgarmente materialista e submetida ao jugo manipulador de uma tirania facisto-fundamentalista, ignoram, por exemplo, que mesmo a Suécia, caso fosse anexada pelos americanos, seria hoje o estado mais pobre da união. Que francês ou alemão ousaria dizer a seus (em breve ex-) amigos que, do lado oposto do oceano, vive-se melhor? Conforme os que sabem disso votam com os pés, as classes dirigentes se esquivam das perguntas embaraçosas.
O problema é que balas perdidas desse tiroteio chegam (descontextualizadas) a nossos trópicos.
Há dois grandes modelos a serem discutidos no Brasil. Cada qual dispõe de partidários e opositores honestos e desonestos. Quem fará a escolha, contudo, é seu futuro beneficiário ou vítima: o eleitor. Talvez a demonização dos EUA e a exaltação de uma Europa vista através de lentes cor-de-rosa correspondam à realidade. Talvez não. É ao eleitor que cabe julgar, e, se ele jamais optará pela alternativa "certa" (algo que existe somente na cabeça dos ideólogos), quanto mais pontos-de-vista lhe forem oferecidos, tanto mais informada será sua escolha.
Assim, não deve lhe fazer mal nenhum considerar a hipótese de que o modelo europeu se assemelha cada vez mais a uma espécie de peronismo. Sua expressão acabada é a franco-alemã, mas, defendido por uma esquerda unânime (inclusive na Inglaterra e nos EUA) e predominando, independentemente da pigmentação ideológica da epiderme política, na metade ocidental do continente, ele ancora o projeto da União Européia. Se algo o caracteriza, é seu déficit crescente de democracia tal como a concebemos no Brasil, onde, não obstante séculos de complicações herdadas (dos europeus), os cidadãos, que a entendem enquanto direito a preferirem seus próprios "erros" em detrimento dos "acertos" alheios, resolveram, de Maluf a Marta, de Collor a Fernando Henrique a Lula, experimentar na prática todas as principais as opções disponíveis.
Nosso país tem pouco a aprender com a recente e rala tradição democrática de uma Europa continental na qual a elite, que desconfia profundamente das massas incultas, tomou o cuidado de, nas constituições e estruturas administrativas, embutir mecanismos destinados a assegurar que, fosse qual fosse o voto do eleitor, o resultado obtido seria, no mais das vezes, o "certo", ou seja, aquilo que funcionários pós-graduados, exímios conhecedores de vinho, de pintura e incapazes de (como Lula ou Bush) tropeçarem nas respectivas gramáticas, sabem ser o melhor para seus povos.


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