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NELSON ASCHER
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Muitos manuais discutem
a dificuldade de traduzir
palavras ou expressões que, de
tão enraizadas em experiências
geograficamente circunscritas, seriam inteligíveis apenas na língua de origem. Este é o caso de
"sertão", termo que, no Brasil,
evoca "Asa Branca", os romances
de Graciliano ou os filmes de
Glauber. Embora tal brasileirismo, remetendo-nos a seca e retirantes, nomeie uma singularidade intraduzível, os piores momentos do drama nordestino têm
coincidido com estiagens na África do Sul, inundações no norte do
Peru etc.
Foi em meados dos anos 80 que
se determinou a origem comum
destes e de outros fenômenos aparentemente desconexos, pois todos se devem à interação entre as
temperaturas do ar e da superfície marinha no Pacífico central e
ocidental que, repetindo-se há
milhares de milênios com intensidades diferentes e em intervalos
irregulares (de dois a dez anos)
nas latitudes equatoriais, desencadeia o assim chamado El Niño.
Graças a ele, as tragédias sofridas
por incas nos Andes, bosquímanos no Calaári ou aborígenes australianos sempre estiveram relacionadas com a miséria de Severino, filho de Maria.
Por menos que lhe tenhamos
ainda esmiuçado os detalhes, o
caráter global do clima salta aos
olhos. Já a globalização zoológica
é mais nova. Faz pouco que, descontando enclaves isolados como
a Austrália, os mamíferos placentários, ocupando-lhes os hábitats,
levaram à extinção seus pobres
primos marsupiais. A colonização humana do planeta inteiro
não passa de um capítulo daquela, e é sobretudo por causa de sua
triste nota de rodapé (não de um
"holocausto" intencional), a unificação epidemiológica da humanidade, que desapareceram 95%
dos colonos chegados às Américas
antes de 1492.
Como, para pessoas concretas, a
"longa duração" de que falava
Fernand Braudel consiste num
pano de fundo imune à ação do
homem, o desinteresse nacional
pela política internacional que,
das nossas praias, parece às vezes
tão ininfluenciável quanto os fenômenos climáticos, é mais do
que compreensível, se bem que
não menos frustrante. Daí, quem
sabe, o costume de tratarmos não
só os acontecimentos mas também os modelos políticos estrangeiros como abstrações remotas:
afinal, o que é que eles têm a ver
conosco?
Absolutamente tudo. E é a cegueira voluntária induzida por
um preconceito etno-racial, religioso, elitista, nacionalista e ideológico, importado do Velho Mundo, o antiamericanismo, que leva
meus conterrâneos a idealizarem
uma Europa que nunca existiu.
Esse preconceito (que nada tem
a ver com a crítica à política real
de um país real), se não foi gerado, vem sendo difundido a todo
vapor, com o auxílio de seus dependentes (a intelectualidade e a
imprensa locais), pelos governos
europeus. Seu alvo preferencial
são as próprias populações do
continente que, habituadas tanto
pela mídia oficial e oficiosa quanto pelo sistema educacional (como o haviam sido, antes, os súditos da defunta URSS) a ver na
"Amerika" uma sociedade em
crise perpétua, habitada por gente religiosa, obesa, vulgarmente
materialista e submetida ao jugo
manipulador de uma tirania facisto-fundamentalista, ignoram,
por exemplo, que mesmo a Suécia, caso fosse anexada pelos
americanos, seria hoje o estado
mais pobre da união. Que francês
ou alemão ousaria dizer a seus
(em breve ex-) amigos que, do lado oposto do oceano, vive-se melhor? Conforme os que sabem disso votam com os pés, as classes dirigentes se esquivam das perguntas embaraçosas.
O problema é que balas perdidas desse tiroteio chegam (descontextualizadas) a nossos trópicos.
Há dois grandes modelos a serem discutidos no Brasil. Cada
qual dispõe de partidários e opositores honestos e desonestos.
Quem fará a escolha, contudo, é
seu futuro beneficiário ou vítima:
o eleitor. Talvez a demonização
dos EUA e a exaltação de uma
Europa vista através de lentes
cor-de-rosa correspondam à realidade. Talvez não. É ao eleitor
que cabe julgar, e, se ele jamais
optará pela alternativa "certa"
(algo que existe somente na cabeça dos ideólogos), quanto mais
pontos-de-vista lhe forem oferecidos, tanto mais informada será
sua escolha.
Assim, não deve lhe fazer mal
nenhum considerar a hipótese de
que o modelo europeu se assemelha cada vez mais a uma espécie
de peronismo. Sua expressão acabada é a franco-alemã, mas, defendido por uma esquerda unânime (inclusive na Inglaterra e nos
EUA) e predominando, independentemente da pigmentação
ideológica da epiderme política,
na metade ocidental do continente, ele ancora o projeto da União
Européia. Se algo o caracteriza, é
seu déficit crescente de democracia tal como a concebemos no
Brasil, onde, não obstante séculos
de complicações herdadas (dos
europeus), os cidadãos, que a entendem enquanto direito a preferirem seus próprios "erros" em
detrimento dos "acertos" alheios,
resolveram, de Maluf a Marta, de
Collor a Fernando Henrique a
Lula, experimentar na prática todas as principais as opções disponíveis.
Nosso país tem pouco a aprender com a recente e rala tradição
democrática de uma Europa continental na qual a elite, que desconfia profundamente das massas incultas, tomou o cuidado de,
nas constituições e estruturas administrativas, embutir mecanismos destinados a assegurar que,
fosse qual fosse o voto do eleitor, o
resultado obtido seria, no mais
das vezes, o "certo", ou seja, aquilo que funcionários pós-graduados, exímios conhecedores de vinho, de pintura e incapazes de
(como Lula ou Bush) tropeçarem
nas respectivas gramáticas, sabem ser o melhor para seus povos.
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