|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"Estamira" exibe na tela "discurso inclassificável"
Catadora de lixo revelada em documentário de Marcos Prado intriga intelectuais
Medicada como psicótica, Estamira "não cabe em sistemas", na opinião do filósofo Luiz Fuganti, que vê nela "potência filosófica"
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Por hábito da profissão de fotógrafo, Marcos Prado se atraiu
primeiro pela imagem de Estamira. Até o momento em que
parou para escutá-la.
Daí em diante, Prado não deixou mais de ouvi-la, durante
quatro anos seguidos, no Jardim Gramacho, o lixão do Rio
de Janeiro, onde ele realizava
um ensaio fotográfico, e Estamira garantia sua existência garimpando raspas e restos.
O registro das conversas com
o fotógrafo e cineasta, do cotidiano de Estamira, de sua relação com filhos e neto estão no
documentário que leva seu nome e que estréia hoje em cinemas do Rio e de São Paulo.
"Que potência filosófica ela
tem, de criar conceitos e definir
modos de pensar", disse o filósofo Luiz Fuganti, em debate
sobre o filme, promovido pela
Folha, na última terça, em SP.
O psicanalista Contardo Calligaris, colunista da Folha, observou no mesmo debate que
Estamira construiu "uma cosmologia e uma cartografia"
próprias. Para Fuganti, "não é o
discurso de uma paranóica, não
é classificável pela psiquiatria,
não cabe em sistemas".
No primeiro contato que
Prado teve com Estamira no
Jardim Gramacho, ela contou
sua história e suas idéias sobre
o mundo ao cineasta -autor de
"Os Carvoeiros" (1999), que
Prado co-dirigiu com seu sócio
José Padilha ("Ônibus 174").
Impressionado com a personalidade de Estamira, ou, nas
palavras de Calligaris, com seus
"delírios psicóticos de alta qualidade", Prado a procurou dois
meses depois, com a proposta
de realizar um filme sobre sua
vida. Estamira reagiu à idéia
com um pensamento sobre justiça: "Tarda, mas não falha", ela
disse, segundo conta o diretor.
Na hora de entregar Estamira aos olhos e ouvidos do espectador, Prado diz ter optado
por "uma montagem audaciosa, corajosa, perigosa". Isso
quer dizer que, nos primeiros
minutos, há só discursos de Estamira, sem qualquer outra
contextualização ou sem a
idéia de "uma história", como
afirma o documentarista.
"No exterior, eu via levas de
pessoas partindo da sala", conta o cineasta, que exibiu seu filme em diversos festivais internacionais e arrebatou 25 prêmios dentro e fora do país.
Sobre os espectadores que
viravam as costas para Estamira, Prado pensava: "É a seleção
natural". Nem todos querem
ou suportam ouvir o discurso
ora raivoso ora doce, mas sempre enfático da catadora de lixo. Assim como nem todos suportam a convivência com o
ambiente putrefato do Jardim
Gramacho. "Tem gente que
não se agüenta com ele [o lixão]", diz Estamira no filme.
Após os 20 minutos iniciais,
nos quais o espectador tem
contato com o pensamento puro de Estamira, Prado introduz
a história de sua vida.
Aos poucos, descobre-se o
histórico de distúrbio psíquico
de sua mãe e o percurso dramático da vida de Estamira. Aos 12
anos, foi entregue à prostituição pelo próprio avô. Aos 17,
conheceu no prostíbulo um italiano com quem se casou e teve
sua primeira filha. Vêm em seguida as sucessivas traições do
marido, as brigas violentas, a
separação, novos casamentos e
novos filhos.
O filho de Estamira tentou
interná-la como doente mental. É o que ela não perdoa. A filha mais nova foi entregue pelo
irmão a outra família, para ser
criada longe do Jardim Gramacho. "Minha mãe criou meus
irmãos no lixão, acho que poderia me criar também", diz a
moça, hoje próxima da mãe.
Em montagens anteriores,
Prado chegou a suprimir do filme cenas despudoramente violentas de Estamira. O cineasta
voltou atrás. "Descobri que não
devo mitificá-la", afirma.
Texto Anterior: Minczuk rege o encerramento do festival de Campos Próximo Texto: Frase Índice
|