São Paulo, terça-feira, 28 de julho de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Sexo é política


Se a ideia do leitor é experimentar carreira política, uma vida de abstinência não serve


PASSEI OS últimos dias a viajar por Itália. Comecei no norte, terminei a sul. Nada a declarar: se a Itália não é o mais belo país do mundo, eu nada sei sobre o mundo. O que, aliás, não espanta: o mundo também nada sabe sobre a Itália, esse perpétuo mistério.
Basta lembrar o seu presidente, Silvio Berlusconi, que continua a horrorizar as consciências moralistas. O homem tem 71 anos. O homem tem apetite sexual de 17. E continua a colecionar amantes com uma velocidade inquietante. Todas as semanas, todos os dias, a todas as horas, aparece mais um rosto, mais um nome, mais uma ninfa, de preferência pouco acima do limite legal da idade.
Os casos variam. Podem ser meninas de "boas famílias", que recebem de Silvio presentes caros e regulares. Podem ser prostitutas de luxo, que aparecem em festas privadas para Silvio e os amigos, porque o homem é generoso e gosta de partilhar.
Infelizmente, a mulher de Berlusconi não aprecia o espírito do marido e deplora o seu gosto por "menores". Berlusconi não responde. Melhor: não confirma nem desmente. Limita-se a dizer um "eu sou mesmo assim", e os italianos, pelos vistos, aplaudem o fato de ele ser mesmo assim.
Exagero? Não exagero. Auscultando o povo nas ruas, confirmo o que digo. As mulheres italianas adoram Berlusconi e, em privado, lamentam os homens que têm em casa. Os homens invejam Berlusconi e, em privado, lamentam as mulheres que têm em casa. E quando eu replico com uma frase moralista e clichê ("Mas tudo isso não é uma vergonha para a Itália?"), os nativos olham-me com espanto e depois perguntam de que planeta eu venho. Nada respondo. Dizer "Portugal" seria um suicídio. Por enquanto.
Sei do que falo. Lamento o que falo. Os italianos tiveram Mussolini e têm Berlusconi. Que o mesmo é dizer: em ditadura ou democracia, homens viris para orgulhar a raça. Portugal, pelo contrário, teve um ditador durante quatro décadas que, de acordo com a história oficial, morreu casto. Durante anos, essa imagem de castidade nunca perturbou os portugueses. Perturbar? A castidade de Salazar, juntamente com a sua alegada pobreza material, era argumento de peso que os saudosistas usavam para elogiar o nosso António e o seu regime. "Salazar morreu pobre", diziam eles. E, em matéria sexual, morreu como veio ao mundo. Eis um homem que teve um único amor: a pátria.
Fatalmente, esse retrato mudou nos últimos anos. Mudança inevitável: vivemos num mundo saturado de sexo. Vivemos num mundo onde o sucesso pessoal, e cultural, também se mede entre os lençóis. Foi assim que os portugueses descobriram subitamente que um ditador casto não era motivo para orgulhos. Era motivo para engulhos. Quando todo o mundo transa em quantidade e qualidade, que espécie de povo é esse que é incapaz de produzir um ditador experimentado?
Vieram livros de história. Vieram descrições detalhadas, e fantasiosas, de todas as amantes que o velho António comeu em surdina. O número anda, algures, entre as 40 e as 400. Impossível dizer com rigor. E, depois dos livros, vieram os filmes. Para ilustrar devidamente todos os casos com a nudez frontal obrigatória.
Acabei agora mesmo de assistir a um deles. Intitula-se "A Vida Privada de Salazar" e teve sucesso televisivo entre os lusitanos. Não admira: o filme pretende ser um retrato íntimo de Salazar, do berço até à cova.
Mas talvez seja mais rigoroso apresentá-lo como um retrato íntimo do falo de Salazar, que tem aqui papel heroico digno de Oscar. Da prima à empregada, passando pela atriz de teatro ou pela jornalista ocasional, Salazar não foi um ditador. Salazar foi um triturador.
Moral da história? Só Deus sabe o que os nossos políticos andam a fazer nas horas privadas. Mas existe uma lei civilizacional que é possível esboçar: das aventuras de Berlusconi à ressurreição sexual de Salazar, nenhum povo gosta de se olhar ao espelho e ver uma imagem de frouxidão. As conquistas do líder são as conquistas de todos.
Por isso aconselho: se a ideia do leitor é experimentar carreira política promissora, uma vida de abstinência não serve. Melhor começar desde já a colecionar algumas espécies variadas, na cor ou na idade.
O gosto do povo, como sempre, é democrático.

jpcoutinho@folha.com.br


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