São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 2000


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ARIANO SUASSUNA
Gilberto Freyre e Eu

ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna

CONCORDÂNCIAS E
DISCORDÂNCIAS

Na "Gazeta do Rio Pardo" de 5 de Agosto deste ano, o escritor e professor Nicola S. Costa publica um artigo intitulado "Canudos entre Dois Brasis" e nele faz honrosas referências a meus escritos sobre o Arraial conselheirista, comparando-os com textos de Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Vargas Llosa e João Ubaldo Ribeiro. Vou comentar, aqui, o artigo de Nicola S. Costa, referindo-me a seus tópicos mais importantes. E quero começar por Gilberto Freyre, sobre quem já me manifestei por diversas vezes, pelo menos desde 1962, proclamando a dívida que o Movimento Armorial tem para com a Escola do Recife, o Movimento Modernista de 22 e o Regionalista de 26.
Na verdade, em 1962, foi publicado pela Livraria José Olympio Editora o livro "Gilberto Freyre: Sua Ciência, Sua Filosofia, Sua Arte", para o qual escrevi um artigo em que, logo de início, avisava que não me comportaria diante dele e de sua obra como os que não tinham coragem nem disposição para qualquer discordância. "Em torno de Gilberto Freyre quase não há mais diálogo", dizia eu.
E acrescentava: "Por outro lado, não temerei confessar influências recebidas dele como de outros. Esta é uma atitude pouco generosa e tola. Aliás, se fosse me referir a todas elas, seria um nunca-acabar. Em minha formação de artista, recebi influência até de Rafael Sabatini e de Alexandre Dumas Pai: ainda hoje tenho vontade de escrever novelas com o encanto e o movimento que eles sabiam dar às suas. Boccaccio, Cervantes, Gil Vicente, Stendhal, Molière, Plauto, Homero, Virgílio, Dostoiévski são os clássicos que leio e releio sem cessar. Dos Poetas, recebi influência de García Lorca, Drummond, Fernando Pessoa, além dos clássicos já citados e de Horácio. E há as influências diárias, profundas e silenciosas dos amigos, entre as quais eu citaria a de um grande poeta desconhecido do Brasil: José Laurênio de Melo. Mas isso tudo é um capítulo muito grande que, a rigor, deveria incluir nomes de poetas populares, como Leandro Gomes de Barros, de pesquisadores modestos e limitados, como Leonardo Mota, e de grandes pintores e filósofos, como meu amigo Francisco Brennand -outro grande desconhecido, até agora-, Maritain e Bergson" (Ob., págs. 474 / 475).
Relendo agora o texto, vejo, triste, que, entre os Poetas, não citei Jorge de Lima e Manuel Bandeira; entre os filósofos, Mathias Ayres e Nietzsche; e anoto, contente, que o Brasil inteiro já começa a reconhecer meu amigo Francisco Brennand como o grande artista que é, mas cuja importância, em 1962, eu era um dos poucos a proclamar, lutando infatigavelmente contra os novidadeiros, que já naquela época confundiam modas e modismos com renovação e acusavam Brennand de não ser um artista "em sintonia com seu tempo".
Mas, voltando ao meu texto de 1962: nele eu afirmava que iria evitar tanto a atitude dos que negavam a importância de Gilberto Freyre quanto a dos que nunca discordavam dele. Faria isso exatamente no instante em que iria prestar minha homenagem "àquele que foi o primeiro a chamar, de modo sistemático e constante, a nossa atenção para o fato de que significávamos algo, dando dignidade a uma Cultura, a uma maneira de vida e a uma Arte até então desprezadas e colocadas de lado" (pág. 475).
E continuava: "À guisa de introdução e lembrando mais uma vez que não sou estudioso de Sociologia (...), gostaria de fazer uma distinção entre dois tipos de Regionalismo que pressinto: o "de posição" e os "históricos". O primeiro é uma posição fundamental, que inclui, de certo modo, uma atitude de vida e que tem, como decorrência, entre outras coisas, uma posição artística. Os do segundo tipo são esta posição enquanto assumida por indivíduos ou por grupos num movimento, como o que Gilberto Freyre desencadeou aqui, por volta de 1926. Quando, por exemplo, o jovem ensaísta pernambucano Mozart Siqueira ataca o Regionalismo, classificando-o de "assunto de ontem" no título de uma conferência, quer-me parecer que ele não leva essa distinção na devida conta. O Regionalismo, como movimento histórico, pode estar superado no Nordeste (...), mas, enquanto encarado como uma das posições legítimas que se pode tomar em Arte, não o está, porque, deste ponto-de-vista, nenhuma posição se pode considerar como superada. Tomado neste sentido, o Regionalismo não é de hoje nem de ontem, é de sempre, como o Classicismo ou o Barroco. Um estilo não se liga somente à momentânea predominância histórica de que gozou neste ou naquele momento: é uma posição que pode ser adotada com a maior liberdade por qualquer artista, sem preocupações de moda ou de anacronismo. Penso, por exemplo, em Shelley e Stendhal, vivendo, ambos, no momento histórico do Romantismo, um, porém, em conformidade com a moda e fazendo grande poesia, outro em oposição ao gosto de seu tempo e escrevendo uma das maiores prosas que já houve. Penso em Machado de Assis, clássico entre naturalistas, parnasianos e românticos de terceira ordem. E afirmo, antes de tudo, a liberdade que tem o artista de fazer o que lhe agrada, contra rótulos, contra as inclinações de seu tempo (...) e contra qualquer imposição que os deterministas julguem descobrir".


(Continua na próxima semana.)


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