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ARIANO SUASSUNA
Gilberto Freyre e Eu
ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo
idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de
casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso
e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia
e Licenciado em Artes Ariano Suassuna
CONCORDÂNCIAS E
DISCORDÂNCIAS
Na "Gazeta do Rio Pardo"
de 5 de Agosto deste ano, o
escritor e professor Nicola S. Costa publica um artigo intitulado
"Canudos entre Dois Brasis" e nele faz honrosas referências a meus
escritos sobre o Arraial conselheirista, comparando-os com textos
de Guimarães Rosa, Gilberto
Freyre, Vargas Llosa e João Ubaldo Ribeiro. Vou comentar, aqui, o
artigo de Nicola S. Costa, referindo-me a seus tópicos mais importantes. E quero começar por Gilberto Freyre, sobre quem já me
manifestei por diversas vezes, pelo menos desde 1962, proclamando a dívida que o Movimento Armorial tem para com a Escola do
Recife, o Movimento Modernista
de 22 e o Regionalista de 26.
Na verdade, em 1962, foi publicado pela Livraria José Olympio
Editora o livro "Gilberto Freyre:
Sua Ciência, Sua Filosofia, Sua Arte", para o qual escrevi um artigo
em que, logo de início, avisava
que não me comportaria diante
dele e de sua obra como os que
não tinham coragem nem disposição para qualquer discordância.
"Em torno de Gilberto Freyre
quase não há mais diálogo", dizia
eu.
E acrescentava: "Por outro lado,
não temerei confessar influências
recebidas dele como de outros.
Esta é uma atitude pouco generosa e tola. Aliás, se fosse me referir a
todas elas, seria um nunca-acabar. Em minha formação de artista, recebi influência até de Rafael
Sabatini e de Alexandre Dumas
Pai: ainda hoje tenho vontade de
escrever novelas com o encanto e
o movimento que eles sabiam dar
às suas. Boccaccio, Cervantes, Gil
Vicente, Stendhal, Molière, Plauto, Homero, Virgílio, Dostoiévski
são os clássicos que leio e releio
sem cessar. Dos Poetas, recebi influência de García Lorca, Drummond, Fernando Pessoa, além
dos clássicos já citados e de Horácio. E há as influências diárias,
profundas e silenciosas dos amigos, entre as quais eu citaria a de
um grande poeta desconhecido
do Brasil: José Laurênio de Melo.
Mas isso tudo é um capítulo muito grande que, a rigor, deveria incluir nomes de poetas populares,
como Leandro Gomes de Barros,
de pesquisadores modestos e limitados, como Leonardo Mota, e
de grandes pintores e filósofos,
como meu amigo Francisco Brennand -outro grande desconhecido, até agora-, Maritain e
Bergson" (Ob., págs. 474 / 475).
Relendo agora o texto, vejo, triste, que, entre os Poetas, não citei
Jorge de Lima e Manuel Bandeira;
entre os filósofos, Mathias Ayres e
Nietzsche; e anoto, contente, que
o Brasil inteiro já começa a reconhecer meu amigo Francisco
Brennand como o grande artista
que é, mas cuja importância, em
1962, eu era um dos poucos a proclamar, lutando infatigavelmente
contra os novidadeiros, que já naquela época confundiam modas e
modismos com renovação e acusavam Brennand de não ser um
artista "em sintonia com seu tempo".
Mas, voltando ao meu texto de
1962: nele eu afirmava que iria evitar tanto a atitude dos que negavam a importância de Gilberto
Freyre quanto a dos que nunca
discordavam dele. Faria isso exatamente no instante em que iria
prestar minha homenagem
"àquele que foi o primeiro a chamar, de modo sistemático e constante, a nossa atenção para o fato
de que significávamos algo, dando dignidade a uma Cultura, a
uma maneira de vida e a uma Arte
até então desprezadas e colocadas
de lado" (pág. 475).
E continuava: "À guisa de introdução e lembrando mais uma vez
que não sou estudioso de Sociologia (...), gostaria de fazer uma distinção entre dois tipos de Regionalismo que pressinto: o "de posição" e os "históricos". O primeiro é
uma posição fundamental, que
inclui, de certo modo, uma atitude de vida e que tem, como decorrência, entre outras coisas, uma
posição artística. Os do segundo
tipo são esta posição enquanto assumida por indivíduos ou por
grupos num movimento, como o
que Gilberto Freyre desencadeou
aqui, por volta de 1926. Quando,
por exemplo, o jovem ensaísta
pernambucano Mozart Siqueira
ataca o Regionalismo, classificando-o de "assunto de ontem" no título de uma conferência, quer-me
parecer que ele não leva essa distinção na devida conta. O Regionalismo, como movimento histórico, pode estar superado no Nordeste (...), mas, enquanto encarado como uma das posições legítimas que se pode tomar em Arte,
não o está, porque, deste ponto-de-vista, nenhuma posição se pode considerar como superada.
Tomado neste sentido, o Regionalismo não é de hoje nem de ontem, é de sempre, como o Classicismo ou o Barroco. Um estilo
não se liga somente à momentânea predominância histórica de
que gozou neste ou naquele momento: é uma posição que pode
ser adotada com a maior liberdade por qualquer artista, sem preocupações de moda ou de anacronismo. Penso, por exemplo, em
Shelley e Stendhal, vivendo, ambos, no momento histórico do
Romantismo, um, porém, em
conformidade com a moda e fazendo grande poesia, outro em
oposição ao gosto de seu tempo e
escrevendo uma das maiores prosas que já houve. Penso em Machado de Assis, clássico entre naturalistas, parnasianos e românticos de terceira ordem. E afirmo,
antes de tudo, a liberdade que tem
o artista de fazer o que lhe agrada,
contra rótulos, contra as inclinações de seu tempo (...) e contra
qualquer imposição que os deterministas julguem descobrir".
(Continua na próxima semana.)
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