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"O POVO DO ABISMO"
Autor norte-americano descreve a vida de moradores de rua de Londres no início do século 20
Denúncia de Jack London ecoa nas ruas de SP
CARLOS EDUARDO LINS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há um século e dois anos, o
escritor americano Jack
London resolveu viver por um
tempo (que durou 86 dias) na
parte oriental de Londres, onde
moravam em cortiços ou na rua
cerca de 450 mil pessoas, que ele
chamou de "o povo do abismo".
O relato pungente pela precisão
de estilo jornalístico está sendo
posto à disposição dos brasileiros
numa edição do livro que o autor
diria, no ano de sua morte, que foi
aquele de que mais gostou: "Nenhum outro [livro meu] arrancou
tanto do meu coração quanto
aquele estudo da degradação econômica dos pobres".
O que restaria do coração do
apaixonado London se ele pudesse testemunhar mais de cem anos
depois o assassinato de mendigos
sem-teto nas ruas de uma grande
metrópole do Novo Mundo (que
ele julgava superior à Europa) em
que "o povo do abismo" é muito
mais numeroso e sobrevive em
condições muito piores do que as
"do inferno social chamado Londres" do início do século 20?
Logo no início do livro, London
reproduz uma notícia de jornal
sobre a morte de Elizabeth Crews,
de 77 anos, moradora de um
quarto de cortiço por três décadas
e meia: "O doutor Chase Fennel
disse que a morte se deveu a uma
infecção sangüínea causada por
escaras, ocasionadas por autonegligência e pelo ambiente sujo".
A conclusão, indignada, do autor é clara: "O mais alarmante sobre esse pequeno incidente... é a
complacência com que as autoridades examinaram e emitiram o
julgamento. Que uma velha senhora de 77 anos de idade tenha
morrido de AUTONEGLIGÊNCIA é a maneira mais otimista de
encarar o fato. A culpa por ter
morrido foi da velha morta e, uma
vez identificada a responsabilidade, a sociedade segue satisfeita,
para resolver outras questões".
O destino da senhora Crews foi
com certeza muito mais risonho
do que o de "uma moradora de
rua conhecida como Maria e que
dormia na rua Barão de Iguape,
próxima do 1º DP (Sé)", segundo
a Folha de segunda-feira passada,
que morreu com golpes na cabeça
de "instrumentos contundentes"
muito antes de chegar aos 77
anos, idade superior à expectativa
média de vida das brasileiras (estimada em 69 anos).
A descrição de London é chocante, mas não muito diversa da
que qualquer repórter poderia fazer hoje sobre o que se vê debaixo
de algumas pontes e viadutos da
cidade de São Paulo: "... As criaturas empilhavam-se ali com seus
andrajos, a maior parte do tempo
dormindo ou tentando dormir.
Aqui, uma dúzia de mulheres
com idades que variavam de 20 a
70 anos. Ali, um bebê, talvez de
uns nove meses, dormindo deitado sobre o banco duro, sem travesseiro ou coberta, sem ninguém
para cuidar dele. Um pouco à
frente, meia dúzia de homens,
dormindo em pé ou recostados
um no outro".
Nos pontos altos de sua ficção,
como num dos melhores romances da língua inglesa, "O Apelo da
Selva" (The Call of the Wild),
London era praticamente irretocável. Mas nos textos jornalísticos, sociológicos ou panfletários,
quase sempre as contradições escandalosas de sua personalidade
multifacetada vinham à tona escandalosamente.
É assim também em "O Povo do
Abismo", onde convivem a compaixão comovedora pela desgraça
alheia, a revolta raivosa contra o
sistema que engendra injustiças
tão flagrantes, o nacionalismo
americano ingênuo e arrogante e
até um despudorado apoio a teses
próximas da eugenia e da superioridade racial.
A vida de Jack London foi um
fosso de incoerências. Seu talento
com as palavras e sua genuína e
extraordinariamente intensa solidariedade com os semelhantes o
redimem como homem e como
artista. "O Povo do Abismo", embora não possa ser listada entre os
seus grandes trabalhos, é um grito
desesperado de denúncia que
ecoa com particular relevância
nestes dias em São Paulo.
Carlos Eduardo Lins da Silva, jornalista, é diretor da Patri Relações Governamentais e Políticas Públicas
O Povo do Abismo
Autor: Jack London
Editora: Perseu Abramo
Quanto: R$ 38 (336 págs.)
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