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CECILIA GIANNETTI
Hunos
Por que não pegam esses carros, esse dinheiro e essa disposição toda e vão à praia roer queijo coalho no palito?
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O QUE quero eu dizer ao chamar de hunos meus vizinhos? Que vivo e trabalho
em rua movimentada -por eles.
Que o paraíso artificial deles é a temporada no inferno de quem tenta ler,
escrever ou mesmo assistir a um
DVD com o volume da TV marcando 29. Que a minha agenda de trabalho precisa ser refeita constantemente para acomodar as oscilações
na rotina de farras da vizinhança.
Se chegam cedo ao bar da rua
-em torno das dez da manhã-, por
volta das cinco da tarde eles vão para
casa, depois de terem cantado Ana
Carolina, Zeca Pagodinho e/ou Chico Buarque batendo palmas fora de
ritmo; de terem brigado; de terem
torrado a paciência de todo um prédio, a ponto de seus moradores se
transformarem naquilo que, quando jovens, ninguém imagina que será um dia: a pessoa que, pela janela,
joga um balde d'água nos bêbados.
Os hunos não são jovens. Dizem
até que ali, em meio à baderna diária, está sempre uma professora de
graúda universidade federal. Quero
crer que não há, pois as discussões
-escuto todas- têm o nível de um
talk-show ambientado sobre um
pau de galinheiro.
Porém, em torno do bar eles estacionam carros bons. Há, portanto,
algum dinheiro. Há uma cidade
imensa, cheia de melhores bares e
lugares. O que me faz quicar entre
quatro paredes com censura em forma de perguntas: por que não pegam esses carros, esse dinheiro e essa disposição toda e vão à praia roer
queijo coalho no palito? Ou almoçar
em Santa Teresa, em vez de subsistir
de uma dieta restrita a ovo rosa e lingüiça frita servida no prato de plástico? Um shoppingzinho? Um cineminha? Um café de livraria, já que há
entre eles -dizem, dizem...- uma
professora universitária?
(E aqui tenho a plena consciência
de soar como aquele tipo de síndica
coroca que, além de atirar baldes
d'água pela janela, fura as bolas que
as crianças da rua deixam cair no seu
quintal).
Se os hunos partem "cedo" -ou
seja, ainda à tardinha-, tenho a noite para trabalhar ou dormir. Se chegam à tarde, minha noite será dedicada a ouvir seus colóquios, angústias de casais desafinados que já não
entendem mais quem começou qual
baixaria e se acusam de bobagens
mesquinhas. Os hunos são uma festa móvel.
Se a ópera ocorrer às primeiras
horas da madrugada, os hunos não
estarão no bar pela manhã. Aí, calculo que posso dormir mais ou menos
por cinco horas e então começar a
trabalhar. Até o meio-dia, quando
eles retornarem, descansados e esquecidos de tudo o que disseram e fizeram na noite anterior.
Se a última cantoria e/ou debate
ocorrer no começo da noite, porém,
isso significa que poderei escrever
durante a madrugada e dormir até
às dez horas da manhã. Às dez da
manhã o bar já estará aberto, recebendo as primeiras vedetes desse
grupo tão divertido -"síntese do carioca", se levamos em conta a maioria dos cronistas. Salve, simpatia.
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