São Paulo, quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NINA HORTA

Tempo de Mari Hirata


Ela chegou com um vidrinho de conserva de krill. Eles têm oclinhos pretos, definidos, como uns nerds dos mares

HÁ O tempo das andorinhas, das mangas, das chuvas de verão e o tempo da Mari Hirata, que coincide com o dos gafanhotos do arroz. Não perco por nada a chegada desta nossa brasileira-japonesa-francesa que, ruflando as asas, sacudindo as penas, vem nos trazer novidades todos os anos. E, acreditem, ela é de uma delicadeza tal que traz lembranças do Japão toda vez que chega, coisas que nunca vimos, um supermercado na mala, sementinhas, flores, gafanhotos crocantes e caramelados, ingredientes para o seu tofu, que é de uma delicadeza de flor, coisas que já nos vamos acostumando, quase esperando. Pois desta vez, o Josimar me passou um e-mail. "Tenho um presente para você que veio de muito looonge." Já achei que era brincadeira e que seria uma cocada de Tatuí, mas fiquei esperando. Outro dia, escrevi que não poderia morrer sem comer o camarãozinho preferido das baleias, o krill. Imaginava-o mínimo, com uma casquinha "croustillant" e que, frito, faria roc, roc na boca. Já posso morrer. Mari Hirata chegou com um vidrinho de conserva de krill. São lesminhas de milímetros. Imagino quantos milhões deles satisfazem uma baleia, devem andar em esquadras de obnubilar os mares, jelicosos, gelatinosos, atentos, esperando o glupt das bocarras, sua única emoção, olhinhos esbugalhados, de óculos de aro preto. (Eles têm, sim, oclinhos pretos, definidos, como uns nerds dos mares.) Mas, então, Mari Hirata desceu suavemente na cozinha do Carlota, aquela cozinha nova, que fica em frente ao restaurante e que em pouquíssimo tempo ela e sua equipe transformaram numa coisa muito difícil de acontecer. Uma sala de jantar. Mesmo que ninguém se conheça, o clima vai esquentando, a mesa é comunitária, e, no fim, a impressão é de ser uma grande família de mafiosos italianos que tirou a noite para compartilhar uma comida certamente boa e interessante. Da sala, você vê a cozinha, pode aprender como se faz. Não dá para explicar tudo o que comemos. Isto é, não dá para eu explicar. Bebo um pouquinho, um pouquinho só, converso com Mara-brasileira à direita, com os bigodes fartos do Dória à esquerda, e já me esqueço completamente dos deveres de uma cronista, muito mais entusiasmada com as pessoas ao meu lado, com o descobrir que sementinha é aquela, como comer grandes costelas com a mão. O que não é problema eu me esquecer das receitas, porque Neide Rigo toma nota de tudo no seu blog (come-se.blogspot.com). O jantar está lindo, acessem o blog. É uma sensação assim de paz, de partilha. E o pessoal da cozinha, coeso. Mari tem a qualidade de acabar de fazer um jantar dificílimo e ficar com cara de quem quer mais trabalho. (Ultimamente, ela, pequenina, deu para fumar um charutão e, acabada a pajelança, agüenta mais uma aula sem pestanejar.) Carlos Siffert, trabalhando e aprendendo e ensinando... e comendo. A informalidade é tão grande que chega ao ponto de na última vez eu ter sido convidada pelo Carlos, com a promessa de trazê-lo de volta para casa, evitando qualquer problema com o bafômetro. Pois ele esqueceu de me pegar; e eu, de trazê-lo, o que foi resolvido sem problema aparente. Não acreditem nesse relato fútil. A invenção de Carla Pernambuco permite que você coma a comida típica de um país, feito por alguém nascido e crescido no lugar, que entende até o fundo as suas tradições e que tem prazer e passá-las para nós. É um acontecimento raro, bonito, que cura os céticos de suas dúvidas quanto ao poder civilizador de uma mesa indiana de cheiros impossíveis, de sopa de farro numa mesa libanesa, que transcende culturas e receitas e mostra que um quibe pode até sarar a perda de um grande amor.

ninahorta@ol.com.br



Texto Anterior: Tentações
Próximo Texto: Televisão - História: Série relembra julgamento de nazistas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.