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BERNARDO CARVALHO
Defender-se contra si mesmo
O próprio Luis Buñuel
(1900-1983) mal se continha
quando era para falar mal da
adaptação de "O Morro dos Ventos Uivantes" que realizou no México, em 1953, com o título "Abismos de Pasión" -ou "Escravos
do Rancor", como o filme acabou
sendo chamado no Brasil, o que
daria uma coluna à parte.
"Fui obrigado a aceitar os atores contratados por Oscar (Danciger, o produtor) para um filme
musical (...). Prefiro não mencionar os problemas que tive que resolver durante a filmagem, para
obter um resultado dos mais discutíveis", escreveu o cineasta no
seu livro de memórias, "Meu Último Suspiro" (Nova Fronteira,
1982).
"Escravos do Rancor", agora
lançado em DVD, é uma combinação inesperada de Marquês de
Sade com melodrama. Obrigado
a aceitar os maus atores para realizar um antigo projeto (a obra-prima de Emily Brontë fascinava
os surrealistas desde as mais priscas eras; escrito em 1930, o roteiro
era, segundo Buñuel, um dos melhores que já tivera em mãos), o
diretor decidiu deixar a representação desvairar-se.
Em "Escravos do Rancor", o
melodrama é exposto como uma
espécie de doença exacerbada da
representação. Buñuel conseguiu
tirar proveito desse paroxismo,
adequando as condições às quais
se via constrangido (o México, os
maus atores de musical) ao que
desejava ressaltar no romance.
No letreiro que abre o filme, os
personagens são apresentados como "seres à mercê de seus instintos e paixões, para os quais não
existem as chamadas conveniências sociais". O que interessa ao
diretor em "O Morro dos Ventos
Uivantes" não é o amor romântico nem nenhuma outra convenção, mas o que há de animal nos
homens.
"Escravos do Rancor" está recheado de menções a animais. Na
primeira cena, ouvem-se tiros e
uma mulher entra correndo, desesperada, pela casa de uma fazenda. É a irmã do proprietário.
Não suporta as caçadas com as
quais a cunhada se deleita. Ao entrar, depara com o irmão absorto,
espetando um alfinete numa borboleta viva, mais uma para a sua
coleção. Ela diz: "Não gosto de ver
sofrer os animais". Logo atrás,
vem a cunhada, que lhe responde,
com um rifle na mão: "Não os faço sofrer. Mato-os com um tiro.
Passam, sem sentir, da liberdade
à morte".
O filme vai tratar desses "seres à
mercê de seus instintos", que se
debatem por não conseguir passar da liberdade à morte sem conhecer o sofrimento. E, para que o
espectador não se esqueça do que
está vendo, volta e meia o assunto
voltará à baila, seja com a matança de um porco aos berros, seja
com uma mosca devorada por
uma aranha.
Se a defesa dos instintos como
força contra a hipocrisia das convenções sociais e culturais é um
tema caro a Sade e aos surrealistas, o melodrama é, ao contrário,
uma das representações mais
convencionais.
Buñuel se serve das circunstâncias e dos limites de produção que
lhe impuseram para acirrar o
confronto entre os opostos: usa o
melodrama para retratar a força
dos instintos e, inversamente,
mostra como no melodrama
-um gênero exagerado, expressão descompensada da cultura
que não existiria sem a repressão
dos instintos-, se revelam os estertores da representação.
O método é mais ou menos o
mesmo de quando, mais adiante,
o diretor põe um velho a ler para
um menino um trecho da Bíblia,
do Livro da Sabedoria. Ultrapassada a advertência inicial -"Os
ímpios (...) dizem entre si, em seus
falsos raciocínios"-, o texto ganha veemência e se volta contra a
introdução. Ultrapassada a ressalva das primeiras linhas, o leitor desperta para o sentido contrário, a idéia da liberdade como
realização dos instintos (o que dizem os ímpios), uma apologia dos
prazeres físicos, dos "bens presentes" e da juventude contra toda
idealização espiritual: "Nós nascemos do acaso e logo passaremos
como quem não existiu. (...) Nossa vida é a passagem de uma
sombra, e nosso fim, irreversível
(...). Vinde, pois, desfrutar dos
bens presentes e gozar das criaturas com ânsia juvenil".
Buñuel se permite ler o trecho
da Bíblia como afirmação, invertendo o sentido, associando-o à literatura de Sade: "Uma passagem que, para mim, é a mais bela
da Bíblia. (...) O autor destas linhas admiráveis as coloca na boca dos ímpios. Se não, seriam impronunciáveis".
Mais do que ironizar o melodrama por meio de um registro
cômico, como faria Almodóvar,
Buñuel prefere resgatar o que há
de contraditório no gênero, sublinhando na sua própria dinâmica
interna a doença da representação e da cultura, revelando no
exagero da convenção o seu paroxismo.
Não é difícil ver alguma coisa de
Sade no romance de Emily Brontë, mas Buñuel vai além ao fazer
com que as idéias do marquês se
manifestem onde ninguém as enxerga, como antídoto, germinando na Bíblia e no melodrama.
Lá pelas tantas, quando também a irmã se apaixona pelo homem ao qual sua mulher já estava fatalmente ligada desde a infância, o latifundiário exclama:
"Ele é um animal. (...) Vai me
obrigar a defendê-la contra si
mesma!".
A literatura de Sade expõe o absurdo e a contradição trágica que
essa frase expressa. Em princípio,
não faz sentido defender-se contra si mesmo. Em "Escravos do
Rancor", Buñuel vai implodir o
melodrama, fazendo dele a representação máxima desse absurdo,
para jogá-lo contra si mesmo.
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