São Paulo, terça-feira, 28 de setembro de 2004

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BERNARDO CARVALHO

Defender-se contra si mesmo

O próprio Luis Buñuel (1900-1983) mal se continha quando era para falar mal da adaptação de "O Morro dos Ventos Uivantes" que realizou no México, em 1953, com o título "Abismos de Pasión" -ou "Escravos do Rancor", como o filme acabou sendo chamado no Brasil, o que daria uma coluna à parte.
"Fui obrigado a aceitar os atores contratados por Oscar (Danciger, o produtor) para um filme musical (...). Prefiro não mencionar os problemas que tive que resolver durante a filmagem, para obter um resultado dos mais discutíveis", escreveu o cineasta no seu livro de memórias, "Meu Último Suspiro" (Nova Fronteira, 1982).
"Escravos do Rancor", agora lançado em DVD, é uma combinação inesperada de Marquês de Sade com melodrama. Obrigado a aceitar os maus atores para realizar um antigo projeto (a obra-prima de Emily Brontë fascinava os surrealistas desde as mais priscas eras; escrito em 1930, o roteiro era, segundo Buñuel, um dos melhores que já tivera em mãos), o diretor decidiu deixar a representação desvairar-se.
Em "Escravos do Rancor", o melodrama é exposto como uma espécie de doença exacerbada da representação. Buñuel conseguiu tirar proveito desse paroxismo, adequando as condições às quais se via constrangido (o México, os maus atores de musical) ao que desejava ressaltar no romance.
No letreiro que abre o filme, os personagens são apresentados como "seres à mercê de seus instintos e paixões, para os quais não existem as chamadas conveniências sociais". O que interessa ao diretor em "O Morro dos Ventos Uivantes" não é o amor romântico nem nenhuma outra convenção, mas o que há de animal nos homens.
"Escravos do Rancor" está recheado de menções a animais. Na primeira cena, ouvem-se tiros e uma mulher entra correndo, desesperada, pela casa de uma fazenda. É a irmã do proprietário. Não suporta as caçadas com as quais a cunhada se deleita. Ao entrar, depara com o irmão absorto, espetando um alfinete numa borboleta viva, mais uma para a sua coleção. Ela diz: "Não gosto de ver sofrer os animais". Logo atrás, vem a cunhada, que lhe responde, com um rifle na mão: "Não os faço sofrer. Mato-os com um tiro. Passam, sem sentir, da liberdade à morte".
O filme vai tratar desses "seres à mercê de seus instintos", que se debatem por não conseguir passar da liberdade à morte sem conhecer o sofrimento. E, para que o espectador não se esqueça do que está vendo, volta e meia o assunto voltará à baila, seja com a matança de um porco aos berros, seja com uma mosca devorada por uma aranha.
Se a defesa dos instintos como força contra a hipocrisia das convenções sociais e culturais é um tema caro a Sade e aos surrealistas, o melodrama é, ao contrário, uma das representações mais convencionais.
Buñuel se serve das circunstâncias e dos limites de produção que lhe impuseram para acirrar o confronto entre os opostos: usa o melodrama para retratar a força dos instintos e, inversamente, mostra como no melodrama -um gênero exagerado, expressão descompensada da cultura que não existiria sem a repressão dos instintos-, se revelam os estertores da representação.
O método é mais ou menos o mesmo de quando, mais adiante, o diretor põe um velho a ler para um menino um trecho da Bíblia, do Livro da Sabedoria. Ultrapassada a advertência inicial -"Os ímpios (...) dizem entre si, em seus falsos raciocínios"-, o texto ganha veemência e se volta contra a introdução. Ultrapassada a ressalva das primeiras linhas, o leitor desperta para o sentido contrário, a idéia da liberdade como realização dos instintos (o que dizem os ímpios), uma apologia dos prazeres físicos, dos "bens presentes" e da juventude contra toda idealização espiritual: "Nós nascemos do acaso e logo passaremos como quem não existiu. (...) Nossa vida é a passagem de uma sombra, e nosso fim, irreversível (...). Vinde, pois, desfrutar dos bens presentes e gozar das criaturas com ânsia juvenil".
Buñuel se permite ler o trecho da Bíblia como afirmação, invertendo o sentido, associando-o à literatura de Sade: "Uma passagem que, para mim, é a mais bela da Bíblia. (...) O autor destas linhas admiráveis as coloca na boca dos ímpios. Se não, seriam impronunciáveis".
Mais do que ironizar o melodrama por meio de um registro cômico, como faria Almodóvar, Buñuel prefere resgatar o que há de contraditório no gênero, sublinhando na sua própria dinâmica interna a doença da representação e da cultura, revelando no exagero da convenção o seu paroxismo.
Não é difícil ver alguma coisa de Sade no romance de Emily Brontë, mas Buñuel vai além ao fazer com que as idéias do marquês se manifestem onde ninguém as enxerga, como antídoto, germinando na Bíblia e no melodrama.
Lá pelas tantas, quando também a irmã se apaixona pelo homem ao qual sua mulher já estava fatalmente ligada desde a infância, o latifundiário exclama: "Ele é um animal. (...) Vai me obrigar a defendê-la contra si mesma!".
A literatura de Sade expõe o absurdo e a contradição trágica que essa frase expressa. Em princípio, não faz sentido defender-se contra si mesmo. Em "Escravos do Rancor", Buñuel vai implodir o melodrama, fazendo dele a representação máxima desse absurdo, para jogá-lo contra si mesmo.


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