São Paulo, Quinta-feira, 28 de Outubro de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
Virilidade em crise

Susan Faludi (jornalista feminista) ficou conhecida há sete anos quando publicou "Backlash". O livro criticava o refluxo ("backlash") antifeminista na sociedade norte-americana dos anos 80/90. Agora, ela publica com muita fanfarra: "Stiffed: The Betrayal of the American Male". "Stiffed" significa enganado, privado do que seria devido, mas também evoca vários endurecimentos: do cadáver, da ereção e do bíceps. Em português, poderia ser: "Duros: A Traição do Macho Americano", onde -além das várias turgescências - "duros" significa também "sem um tostão no bolso".
Os machos estão duros como nunca. Sobretudo estão duros de virilidade. Por isso mesmo se fazem de duros, mas é uma palhaçada. Durante sete anos, Faludi saiu à caça de machos em crise. Encontrou operários desempregados, veteranos do Vietnã, adolescentes que contam suas conquistas como os pistoleiros contavam os cadáveres de seus inimigos, Sylvester Stallone, cadetes do Exército que se transformam em drag queens à noite etc.
Como a imprensa (não só norte-americana) repete há uma boa década, os homens estão de mal com sua virilidade. É frequente que a culpa seja atribuída às mulheres rebeldes. Nisso, Faludi inova. A excursão pelas dores dos machos contemporâneos não se resolve por mais um capítulo da guerra dos sexos. Os homens estão em crise e a culpa não é das mulheres. Provavelmente, aliás, a opressão das mulheres também não devia ser culpa dos homens. Faludi considera, em suma, que homens e mulheres são ambos vítimas de um sistema alienante e que estaria na hora de juntos lutarem para sair dessa.
Engraçado, é mais ou menos o que os marxistas diziam nos anos 60, quando as mulheres, assim como as minorias raciais e sexuais, cansaram de esperar pela revolução global e foram arrancar alguma liberação diretamente dos grupos que as oprimiam. Faludi volta inesperadamente a esta ótica de liberação para todos porque descobre (e mostra de maneira convincente) que os homens de hoje sofrem de uma alienação igual à alienação das mulheres dos anos 50-60.
No que consiste esta alienação? Os homens são hoje chamados a manifestar sua virilidade como pura aparência, assim como as mulheres dos anos 60 viviam uma feminilidade feita de ornamentos. Faludi constata (sem originalidade, mas com pertinência) que vivemos em uma "sociedade ornamental". Ou seja, num mundo onde o que nos define não são nossos atos e produtos, mas nossa aparência. A universalização desta organização social -onde importa aparecer e não ser ou fazer- torna a virilidade tão incerta quanto a feminilidade mais retrógrada. O homem moderno se feminiza segundo a caricatura de uma feminilidade que talvez na mulher já não exista mais. Difícil contestar o diagnóstico de Faludi: a virilidade de hoje é um enfeite, como são enfeites a riqueza e a classe social.
Portanto, ela conclui, homens e mulheres, mesma alienação e mesma luta. Mas alienação em relação a quê? Atrás dos ornamentos, o que deveríamos reencontrar? Faludi, apesar de propor uma crítica social global, não é nem um pouco marxista. Com isso, ela acaba sendo ingenuamente nostálgica. Ou seja, o homem da sociedade industrial (até a Segunda Guerra) se torna uma espécie de saudoso ideal. Definido por sua função produtiva e não por seus ornamentos, ele é o verdadeiro macho.
A virilidade do papai trabalhador vem zombar dos filhos bonitaços e consumistas de hoje. É de questionar por que a exploração brutal do trabalho industrial seria menos alienante (e mais viril) do que a sociedade ornamental.
Parece funcionar aqui, em filigrana, um estereótipo machista que opõe o homem de macacão, veterano, fortão e saudável à virilidade (considerada falsa) do macho malhado, exibido e catalogado gay por querer ser desejado (infausta tradição feminina).
Em suma, as reportagens são cativantes e o livro, brilhante. Mas a crítica social se torna um pouco perigosa quando se compraz no saudosismo.
Na semana passada, nos EUA, estreou "Clube da Luta", filme dirigido por David Fincher, com Brad Pitt e Edward Norton no elenco. Sem entrar em detalhes, o que ficará desse filme nos sonhos dos espectadores eventualmente seduzidos será a seguinte mensagem: para não se perder no consumismo ornamental que nos aliena, os homens devem se reunir entre eles, encher a cara reciprocamente de porradas e, enfim, salpicar a cidade de bombas.
Se há um filme que merece ser classificado pornográfico é esse. Ora, Susan Faludi gostou e até escreveu na "Newsweek" que "Clube da Luta" seria o equivalente masculino hodierno de "Thelma e Louise".
Infelizmente, Norton e Pitt não se jogam em nenhum abismo. Ao contrário, eles fundam um grupinho que tem toda a cara de um partido fascista. Querendo libertar o homem da virilidade ornamental, Faludi lhe propõe uma virilidade ainda mais duvidosa.
Para criticar o equivocado ideal masculino da propaganda Calvin Klein, Faludi aprova uma boa homossexualidade reprimida de grupo. Ora, eu prefiro (de longe e de perto) a Gay Parade ou qualquer desfile de moda-homem à marcha alinhada de enrustidos da SS.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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