São Paulo, segunda-feira, 28 de outubro de 2002

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RÉPLICA

Por que classificar de repetitivo o CD de Maria Bethânia?

DENISE STOKLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Lá vem Picasso pintando de novo mulher de muitos rostos, reutilizado demais!" "E esse Schönberg com a mesmice de sempre!" "Que vozinha sempre igual a do João Gilberto!" "Billie Hollyday está usando e reusando seus estratagemas renitentes!" "Dalton Trevisan de novo com João e Maria, dentinho de ouro." "Êta que o Niemeyer fez mais uma construção niemeyrica!" Em muitos momentos criadores vêm sua elaboração, seu corte estético, seu monumento e movimento artístico recebidos como repetição.
Se Elis Regina pudesse apresentar para nós no ano que vem um CD e show que contivessem de "Upa, Neguinho" a "Se Eu Quiser Falar com Deus", e a moçada pudesse presenciar a um só tempo história e presente? Que máximo, hein? A qualidade brasileira estaria bem festejada.
"Cinema? Não, obrigada, não vou, já assisti a um filme." "Fazer amor? Com aqueles cacoetes, mesmices e estrategemas renitentes de abraços, beijos, etc.? Obrigada, não estou interessada, porque já fiz umas vezes."
Já. Que pressa! O que é exatamente "já" em artes? Nas circences, palhaçadas são repetições? Os trapézios são cacoetes de trapezistas? E o velho número do Chaplin rodando sua bengala, mesmice?
Em festa de aniversário rememoram-se experiências e celebra-se o devir. Maria Bethânia aos 35 anos de carreira sai com seu CD "Maricotinha". As novas gerações ganham um presente, as que acompanham a trajetória renovam seu olhar sobre o amadurecer frutificando. E numa explosão de talentos alia-se a outro mago -aliás, soaria como pleonasmo ingênuo pedir respeito inatacável adquirido por serviços prestados, puro mérito, a este homem único de teatro chamado Fauzi Arap.
Para felicidade do público, ambos revificam as platéias e ouvidos, e de seu encontro perfeito brotam Pessoas e Lispectors.
Gravadora nova: "Biscoito Fino" vem pesquisando e lançando vigorosamente música brasileira da melhor mediante vários bons instrumentistas, compositores, artistas que estavam ocultos.
Nela Bethânia entra como no seu palco, primeiro pedindo licença, devagarzinho, mas cheia de surpresas e planos originais.
Obrigada, Bethânia, pelo seu extraordinário e fortalecido estilo em "Maricotinha". E o pessoalzinho de 20 anos que não te havia visto antes misturando como ninguém poesia e música? Precisava te ver, te ouvir, e você trouxe. Cumpridora de papel cultural. Acredita em história do Brasil.
Mas naquela que a psicodramatista Marisa Greeb conta: "Ué, a gente aprende na escola: "Terra à vista", porém, ponto de vista de quem, cara pálida, se o nosso olhar foi: "Gente à vista!'". Muda tudo! A pergunta é essa: que país queremos? Com o qual estamos engajados? Desprezando e tratando como banal o que é substância e permitindo sair ileso o que é descartável? Que país é esse que fazemos todo dia com nossas opções, artigos, posições?
Pesemos as palavras e os conceitos que diferenciam. Afinal até o Homem Cromagnon, quase pré-histórico, se distinguiu dos primatas por saber distinguir. Precisa voltar até lá para relembrar?
Mas então vamos mesmo. Daí, até, com um pouco de carinho no Brasil, quem sabe chegaríamos a comemorar quando um estacionamento fechasse para ser reformado em teatro, contrariando outra regra geral e generalizada. O resto já sabemos no que deu neste país da barbárie quase estilo.
É de se perguntar ao analista de arte, por que figuras de produção perniciosa ao Brasil (colonizadas, mantenedoras de comportamentos alienados e perversos, algumas até de provados estímulos pedófilos) não levam pedradas, vaias, alertas, em seus lançamentos de livros, discos, peças, filmes ou exposições. Por que, analista de arte, continuar batendo ponto na cartilha que permite esconder a omissão de atacar sistemas de realmente graves consequências nacionais? Isso não se conecta a trabalhar por um país melhor?
Abro o jornal. Nada mesmo escrito sobre essas canções, esses grupos, esses cantores. Incólumes. Hábito mau, brasileiro, como aquele quase inacreditável: o de tantos que serviram à tortura passarem sem vaias pelas ruas. Mas, espere, encontro na segunda página uma crítica classificando de repetitivo o CD de Bethânia (Ilustrada, pág. E2, em 18/10/02), em show dirigido por Arap, na gravadora Biscoito Fino. Já?


Denise Stoklos é atriz e diretora

Internet: www.denisestoklos.com.br

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